quinta-feira, 30 de julho de 2009


Doutor

UnTroglodita

(para Paulo Duboc in memoriam)

...Dia daqueles no Rio de Janeiro.

Dezembro, logo após o almoço, imagine só o sufoco no Fórum de Justiça, numa audiência de criminal, sem ar condicionado, o inferno que não estava?

Nestas condições, lá estava o Doutor, famosa não somente pela competência e indetratável honestidade, mas, também, pela beleza carioca. Separada, 45, mãe de duas lindas filhas, o Doutor hipinotizava a todos com sua carismática beleza: pela branca, seios bem pequenos, mas de uma simplicidade que chegava a irritar as rivais, pois ela abafava qualquer outra mulher, vestindo apenas um jeans, com uma simples cami-seta.

Não era digna de inveja?

Transeuntes, seguranças do Fórum, colegas de profissão e até os réus desejavam e respeitavam-na, já que ela tratava a todos com o mesmo carinho e respeito.

Mas sendo bem dona de si, ela tinha plena consciência de suas limitações.

Em quase 20 anos de dedicação à Justiça, o Doutor nunca tinha cometido um deslize sequer. Pontual no trabalho e inflexível em suas decisões, pois tinha certeza sobre seus veredictos, ela tinha um encanto inexplicável, praticamente hipnótico, pelo Sol.

Quando o trabalho permitia, o Doutor nem pensava: colocava um biquini — pois podia! —, uma canga, óculos escuros e...praia.

Aos 45, acreditem, ela ainda parava o trânsito!

No entanto, mesmo sendo apaixonada pelo Sol, ela nunca sobrepos o seu prazer, aos deveres junto à Justiça.
Mas um dia...

...Fórum, Vara de Trabalho, dezembro, calor e Sol demoníacos. Como se fosse pouco, ainda faltou luz; portanto, o ar condicionado, já era, tornando o ambiente um inomiável inferno.

— Deus do céu, meu negóico é criminal. Eu nem deveria estar por aqui, cacete!

Com visão analítica, o Doutor olhou o suadouro a sua volta, e tomou uma decisão inédita em todos esse anos e décadas de dedicação ao judiciário: mandou tudo às favas, e foi para a praia. Afinal, eram três da tarde, final de ano, horário de verão.

O somatório de tudo isso, só poderia indicar um único resultado: praia, praia e o seu fascinante Sol.

— Deus que me perdoe! Mas é uma vez na vida, e outra na morte.

O Doutor estava certo. Este seria o seu deradeiro veredicto. Sem saber, no meio daquela loucura no tribunal, a sua própria sentença já havia sido julgada e proferida.

Desculpas dadas, caô armado, o apolíneo deus guardava o seu destino.

Trânsito livre, mas com o Sol de rachar, o Doutor chegou rapidinho à primeira etapa do seu destino: a sua casa na zona sul, de onde rapidamente rumou, linda e gostosa, para Ipanema.

— Que Sol mais cáustico!

Reclamava, com estranheza, o Doutor que provavelmente teria sido camelo em sua última encarnação, pois a influência solar que a muitos abatia, no caso dela se transformava numa fonte de recarga e revitalização.

— Nossa, hoje tá demais — queixava-se o Doutor.

O relógio ainda estava longe de marcar 17:30, mas ela tinha a real sensação de que o Sol aumentava a sua intensidade, à medida que o tempo passava. Quando o relógio da praia, na esquina da Vinícius, marcou 17 horas, o clima tornou-se tão inclemente para a juíza foragida, que ela não teve outra alternativa: voltou para casa.

Todavia, ao retornar, ela foi invadida por uma paradoxal sensação de cansaço extremo e beatífica alegria, que tudo suportava. Um calor infernal, cobria toda a superfície do seu corpo. Todavia, um frescor angelical e divino, ventilava seu interior, fazendo-a se sentir um vulcão em lava, com um núcleo de gelo seco.

Quando chegou em casa, logo após estacionar o seu carro na garagem, Dionizu, o zelador paraibano da tarde, a única pessoa deste mundo a chamar o Doutor de doutora, disse:

— Eitcha! Doutora voltou perfumada, tá parecendo uma santa que veio do mar.

Ela fitou o Dionizu, e apenas respondeu com os olhos, o quais transbordavam um amor e um magnetismo que não eram deste mundo. Ao sentir todo aquele fluxo de amor escorrendo pelos olhos dela, o zelador perguntou, ainda sem muito compreender:

— O que foi doutora? Namorado novo, ou julgamento bom no trabalho?

Diafanamente, com doçura e feminilidade, respondeu:

— Os dois!

E assim, desse modo, o doutor foi caminhando, flutuando divinamente, até o seu apartamento, onde...

O Doutor entrou em casa, tomou o seu banho e não se secou, apenas colocou o seu robe branco. Com o corpo molhado e os cabelos húmidos, o vulcão de gelo se deitou, fechou os olhos e...sorriu.

Três dias se passaram, e um fortíssimo e abrangente perfume se espalhou pela casa, bem como por todo o 9º andar. Foi quando Dionizu estranhou o indecifrável perfume, mas sabia que vinha do apartamento de sua estimada doutora.

Como ninguém respondia, depois de tocar por minutos a fio a campanhia, os bombeiros foram chamados para entrar na casa. Logo que abriram, Dionizu entrou, seguindo de cara a secreta fragrância.

Sua busca terminou!

O rastro levou Dionizu, sem maiores problemas, até o sofá da sala, onde estava deitado o Doutor, que mesmo passado os três dias, ainda estava com o corpo integralmente molhado e os cabelos húmidos, escorridos e sensualmente despenteados.

Embora seu corpo não abrigasse vida, algo insólito e desconhecido permanecia ali. Era uma coisa tão divinal que tinha se apossado daquele corpo, que Dionizu sequer ficou triste, ou chorou.

Sem entender o que estava acontecendo com o beato corpo, Dionizu olhou, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e orou, como se estivesse na frente de um altar sagrado.

A mensagem foi clara para todos que estavam ali, perfumando-se: “O Doutor tinha sido julgado”.

Inocente, ou culpado?

Absolvido, ou condenado?

Nunca saberemos!

Um aparente veredicto, já tinha sido lavrado.

Estranhamente, seu semblante manteve-se feliz e seu corpo sempre húmido e brilhante, exalava um forte perfume de filtro solar, que em momento algum, inclusive em todo o seu velório, deixou de cercá-la, como se fosse uma áura.

Acreditem! O mais insólito, ainda está por vir...

Seu velório foi atípico porque levou uma enormidade de pessoas como há muito não se via num cemitério. Não pela quantidade, embora fossem milhares, mas era mesmo pela diversidade dos condolentes que foram prestar as últimas homenagens ao Doutor.

Ah, esqueci de contar: antes de ser insólito, o velório chegou a ser cômico.

Lá estavam políticos de todos os partidos, juízes e desembargadores de todas as instâncias, policiais civis e militares, advogados a dar com rodo, bandidos e a mais relevante nata do crime organizado, todos juntos, lado a lado, para prestar as últimas homenagens ao mais ferrenho e ético juiz já visto nos tribunais.

Embora pareça piada, mas é verdade. Neste velório, podiam ser vistos detentos que deveriam estar — normalmente — em suas celas de segurança máxima. Mas não! Todos deram um jeitinho, e foram ao velório. Até os presos da mais alta periculosidade, exemplarmente condenados pela espada e a balança do Doutor, compareceram, transformando o velória nun ato público de homenagem e, também, de confraternização entre o Estado de Direito e o Poder do Crime Organizado ou Estado Paralelo.

A matéria corrupta e seu agente corrosívo, abraçaram, riram e apertaram as mãos dos imaculados, que riam e se fartavam naquele velório histórico, onde foi servido tudo de bom e do melhor. Enquanto muitos comiam, bebiam, outros negociavam, vendiam e planejavam, um contra o outro, a despeito do clima de solidariedade — aparente, ou não.

Era quase meio-dia, e o velória já tinha se transformado numa grande festa. Rolava funk, pagode, axé, só musicão, só batidão.

De repente, o que ninguém esperava. O dia lindo, ensolarado, foi rapidamente interrompido por um eclipse total do Sol. Tudo ficou em trevas. O perfume sumiu. E todos, sem exceção, foram tomados de espanto e medo. Uma clima de insegurança tinha tomado conta do velório.

Foi quando um dos coveiros disse bem alto, e com toda tranquilidade, para todos escutarem:

— Olha, a festa tá vera, eu mermo tô amarradão, ma vamu dá um descanço real pá madami, pois até o padre se mandô cum medo, tá ligado?

Alguém tinha que botar ordem naquele paradoxo, não acha?

Todos silenciaram e seguiram as instruções do coveiro, que em meio as trevas cemiteriais, iniciou a romaria rumo a última morada.

Como tudo neste velório foi um verdadeiro carnaval de interrogações, o mesmo eclipse terminou num passe de mágica, durando menos de um minuto. No entanto, o Sol voltou tão agressivo e abrassador que nenhum dos presentes ousou acompanhar o enterro, em meio aquele Sol devastador. Nem mesmo os familiares conseguiram acompanhar o féretro onde jazia o Doutor.

Sobrou mesmo para os coveiros, pois pobre não manda mesmo, então...só restava aos dois obedecerem, relaxar e aproveitar o calorzinho, concorda?

Logo que os dois seguiram para a cova, onde ela seria colocada, o indescritível perfume voltou a ser exalado do corpo do Doutor, povoando todo o ambiente como uma benção, deixando todos alegres e calmos, que imediatamente deram continuidade a grande festa-velório.

Ao longe, todos olhavam, procurando uma sombra, pois o Sol, tava de rachar.

Quando os dois, quer dizer, os três, chegaram a cova, o mesmo coveiro disse:

— Aí, meu camarada, ninguém mandô um lero pá iscrevê na pedra da mulher?
— Pô, sacanagem — respondeu o seu parceiro. A gente vê que a mulher é bonita, cheirosa, né, negão?
— Na real? Issu divia toma banho i si perfuma todo dia. Aí vamu iscrivê alguma coisa pá falicida, vamu?

Enquanto um tirou o papel do bolso, o outro sacou de uma caneta. Sob aquele Sol que derreteria qualquer beduíno, ou mesmo um camelo sem maiores problemas, eles escreveram:

“...Nu meiu deçi cheiru gostozu, nesti utimu momemtu, somemti nois treis, e essti Sol des-graçado”.

Quando o coveiro terminou de escrever o epitáfio, um raio de Sol amarelo ouro, caiu do céu, pefurou o caixão, fazendo o Doutor sair dele em forma de uma poeira indigo metálica, que elevou-se pelo ar, em forma espiralada, espalhando-se por todo o céu, até sumir. Em seguida, uma fina chuva com cheiro de filtro solar, precipitou-se sobre tudo e todos.

Reviravolta e terror, tomou conta da multidão. Gritos, choro, tiros e uma insandecida correria esvaziou o cemitério em pouco tempo.

Somente os dois coveiros ficaram olhando, na maior calma, esperando a confussão passar.

Quando tudo voltou a normalidade, o coveiro disse para o seu parceiro:

— Enterro bom, hein? Vamu toma uma cerveja pá livia? Tá um calô.

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