sábado, 1 de agosto de 2009


Quadrilátero - Uma realidade urbana

Parte I - Surto patético-amendoínico – dormindo na realidade

(Para Mario Derly Baglione in memorian, 1933-2002)

"Qualquer ficção com a mera coincidência, não é pura realidade..."

unTroglodita


Tudo o que vou relatar é a mais pura verdade. É exatamente isso o que mais me espanta: a veracidade de todos os fatos que serão relatados. Existem testemunhas, mas no fundo, no fundo, estou me lixando para as testemunhas; até porque isso aqui não é casamento. Danem-se todos os registros e cartórios!

O que realmente importa é que aconteceram coisas que até então nunca tinham ocorrido em minha vida. Tudo de uma forma inusitada, insólita. É mistério!

Eu era um homem de trinta e sete anos, com aparência de trinta; simples e, por isso, como todo o ser humano, bastante complicado. Não tenho religião, embora meio a contragosto, acredite em Deus. Peno muito por não senti-lo; ou, pelo menos, me sinto muito incomodado com o fato de não ter consciência de algo que gostaria de experimentar, mas não faço a mínima idéia do que venha a ser. É uma espécie de saudade do futuro, uma lembrança de algo que não me recordo. Coisa meio complicada para um homem sem religião, não acha?

Não faço a mínima idéia do porquê, mas no dia em que estas inexplicáveis experiências me aconteceram, passei a pensar muito em Deus. Pensei sem temor, refleti sem alegria. Unicamente isso. Apenas refleti.

Em meados de abril deste ano, fazia um belo e ensolarado dia, bem típico do outono carioca, quando o Sol é fraco e pouco incomoda. Quem conhece bem o Rio, sabe o quanto o Sol desta época é gostoso, principalmente para ir à praia. Ainda mais eu que detesto ficar com a pele ardendo por causa do excesso solar. Provavelmente devo ter sido camelo em alguma encarnação recente.

Na hora do almoço, a minha namorada estérica e mimada pelo pai, a Carla, me ligou para que fossemos ao Centro acompanhar o conserto do seu computador. Como trabalho com informática, terminei lhe dando uma mãozinha, pois ela não entende absolu-tamente nada de computadores.

A assistência técnica era ali na rua Senador Dantas. Tudo deu certo, não houve problema algum. Computador e impressora seriam entregues em uma semana. Mesmo não compreendendo o que tinha sido explicado sobre o conserto, ela entendeu que o seu micro ficaria novinho, pronto para o seu trabalho diário, Internet e etc.

— Meu amooooor que bom! Quer dizer que semana que vem posso voltar a trabalhar nos meus projetos, textos e desenhos?
— Se eles entregarem no prazo, o que acho um pouco difícil, até te ajudo com o trabalho acumulado, inclusive na digitação.

Descemos a rua Senador Dantas, em direção a Cinelândia, onde o carro estava estacionado. Carla brincava comigo:

— Drigo, me lembrei que você atualmente parece uma mulher grávida. Anda cheio de desejo, com vontade de comer aquela porcaria de sanduíche anunciado na televisão. Lembra-se?
— Olhos azuis, isto é um convite? Se for, exigirei um sundae com bastante castanha.

Pode parecer ridículo, mas eu realmente estava com a maior vontade de provar aquele sanduíche anunciado pelo McDonald, o McFish, que Carla carinhosamente chamava de porcaria para não me ofender.

Se for possível, faça uma forcinha e tente me compreender: olhos azuis e eu detestamos qualquer tipo de fast food, embora não sejamos naturalistas, nudistas ou ruralistas.

Como adorávamos um programa de índio, fomos ao McDonald do Centro e fizemos a nossa catarse antialimentar. Bata-frita, milk-shake, hamburguer e, logicamente, o imprescindível: a porcaria do peixe americano e um sundae de morango com bastante castanha — e vielas traiçoeiras.

Foi um verdadeiro festival de colesterol, saturado de propaganda e mentira. Eram dois idiotas comendo, alimentando o insipiente sucesso de alguns publicitários, bem como a nossa própria vacuidade.

Foi quando provei o tão anunciado McFish e disse:

— Olha, este maldito peixe com pão é uma das piores coisas que já provei desde a Kaiser Bock. E eu paguei por essa miséria do consumismo ocidental!

Até hoje ainda penso: por que não fiquei calado? Bastou esta infeliz frase para que iniciássemos a nossa primeira e última briga.

— Queridinho, quem pagou essa parada fui eu, tá?
— Tudo bem, tudo bem, mas a vítima fui eu, concorda?

O silêncio nos fez companhia. Carla me observava com os seus felinos olhos pretos, cheios de indignação. Com toda a razão, ela apenas disse com o maior carinho, tentando contemporanizar:

— Drigo, você não vai tomar o seu sundae com castanhas?

Quem diria, a nossa relação estava não por um fio, mas sim por um sundae com bastante castanha. E olha que isso era o de menos. O pior do pesadelo ainda estava por vir.

Gostaria de frisar que não sou paranóico, mas após tomar o meu sundae inundado de castanhas considerei a absurda possibilidade que em nosso mundo globalizado, a traição seja uma cobertura de sorvete.

Fitei o meu sundae e, em seguida, olhei para os olhos de Carla que de um instante para o outro passaram de um cinza tempestade para duas bolas de fogo. Em ter que falar mais uma besteira e me envenenar, optei pelo sacro ofício do consumo: sacrifiquei-me comendo aquele sundae de morango. E realmente era um sacrifício, pois não sabia o que o destino me reservava.

No fundo, no fundo, o tal sundae era a própria traição em cobertura que falei anteriormente. Hoje, na mais perfeita sanidade, entendo aquele inocente sundae como mais um tipo de peixe americano, um McFish gelado do inconsciente.

Sem imaginar o que me esperava, deu a primeira colherada no sundae. Enchi a colher de modo que viesse com bastante castanha. A colher estava tão cheia que cheguei a derramar na mesa um pouco do sorvete, da calda e da maldita cobertura de castanha. Enquanto mastigava e degustava este Cavalo-de-Tróia da gastronomia norte-americana, olhei para Carla: ela já estava com uns óculos espelhado.

Foi através deles que vi a imagem de minha danação outonal.

Vejam só, quando senti o verdadeiro paladar da cobertura de castanhas, tive um tipo de transfiguração às avessas.

A cobertura não era de castanha, mas sim de amendoim!

Me senti traído pelo mundo encantado do consumo. Me enfureci. Sabe por quê? Vou explicar.

Quando era pequenininho, minha mãe me alfabetizou, à força, através dos métodos mais nazistas que poderiam existir: com gibis do Pateta. Portanto, aprendi a ler e a escrever com revistinhas do Pateta, o mesmo que se transformava no Super Pateta quando comia aqueles malditos e torturantes amendoins.

O amendoim tinha se tornado um trauma para mim! Até a rima é feia.

E desde essa época, nunca mais pude comer os amaldiçoados amendoins. Todas às vezes que os comi acidentalmente, tive experiências extáticas, o que terminava me deixando profundamente constrangido e deprimido. Bastava comer alguns amendoins para que, por exemplo, começasse a ter visões, profetizar e até a dar consultas como um verdadeiro pai-de-santo ou algo semelhante.

A situação é tragicômica. Vou dar dois exemplos.

Certa vez numa festa, por pura desatenção, comi alguns enquanto tomava outras doses de uísque. Pronto, baixou o santo, ou sei lá bem o que, mas eu, ou melhor, ele, a entidade, começou a dar consultas em meio aos convidados.

Dizem que foi um sucesso, pelo menos em parte, pois eu era um convidado e os anfitriões quiseram perguntar ao sensitivo algumas coisas. Involuntariamente, comecei a falar em voz alta sobre a infidelidade do casal anfitrião. Em verdade, a festa daqueles dois hipócritas era a mais deslavada comemoração de alguns anos de falsidade e muita infelicidade. Eram dois putos adúlteros.

O vidente de ocasião, agora um oráculo indesejável, terminou apanhando do casal infiel. Em seguida, por ordem expressa dos meus anfitriões, fui preso como charlatão e, chegando na delegacia, como se não bastasse o sacode que levei na festa, terminei apanhando mais um pouquinho. Sabe por quê? Eu, possuído pela entidade, um encosto que não me larga desde a infância, dei uma de José no calabouço faraônico, e danei a profetizei para os presos. Infelizmente, para mim e para os presos, os vaticínios não eram nada auspiciosos e o meu futuro desafortunado logo chegou.

Minha gente, eu entrei na porrada! Apanhei até dos presos que não se consultaram comigo, tamanha era a revolta na carceragem. O que me salvou é que na festa a entidade, ou sei lá que diabo era aquilo, cobrou pelas consultas. Os presos levaram toda a grana e me deixaram em paz, além de bem machucado.

Numa outra ocasião, num jogo do Flamengo, lá na Gávea, onde eu já tinha tomado algumas cervejas, comi, sem querer, a minha criptonita. Sabe o que me aconteceu desta vez? Meu amigo Novalgina disse que eu gritava, possuído pelo espírito de um picareta, em tom de pregação pelas arquibancadas lotadas:

— Olha aqui seus puto! Num sô Flamengo e quero mais é que vocês tudo se foda! Vascoooooooo! Oh, brincadeira não, seis vão levar um sacode do caralho hoje, sacô? Né goleada não, mas seis vão se foder na tabela. Hoje não tem Romário, não tem pênalti, não tem porra nenhuma. Seis vão perder, tá legal?

Olha, mas deu uma merda sem precedentes!

Como se não bastasse, o Novalgina disse que eu ainda cismei com um torcedor, um verdadeiro arquétipo rubro-negro. O cara era um animal, uma fortaleza de músculos afrobrasileira. Cheio de marra, fui encarando o negão.

— Aí negão!

O bom homem, vestindo uma camisa do Flamengo, estava concentrado no péssimo jogo e nos comentário do Canhotinha, o Gérson. Ele não deu a mínima, tinha mais o que fazer. Sequer me ouviu. Mas esta entidade sádica foi até ao pacato e calmo torcedor. E continuou:

— Aí negão! — batendo com força no ombro dele — Tá surdo? É contigo mermo!

O Novalgina, que esta altura já estava bem distante de mim, pois mesmo não sendo vidente já sabia o que me aconteceria, disse que eu caminhei para mais junto do negão, cheio de moral, montado na maior marra dizendo aos berros:

— Olha aqui o flamenguista. Num fui com a tua cara. E é o seguinte... tu é veado, tua mulher tá dando e o Flamengo vai levar um gol agora...

O meu amigo me contou que a última coisa que ele viu foi eu dando um tapa na orelha do negão, pois naquele momento realmente o Flamengo levou um gol e perdeu o jogo em casa, ficando em péssima situação na tabela.

No entanto, quem realmente ficou em péssima situação fui eu. Aliás, muito pior que a do Flamengo. Até hoje não tive como constatar se o negão era veada ou se a mulher dele era realmente adultera, mas que a mão dele com aquele radinho era pesada, ah isso era. O negão me enfiou a porrada.

Afirmo com absoluta certeza: nem todos os bifes juntos em toda a história da humanidade apanharam mais do que eu naquele apocalíptico dia. Apanhei de todo mundo. Apanhei da galera, apanhei da polícia, apanhei até da entidade e de um vascaíno, vejam só!

— Porra, Rodrigo, você até parece com aquela dito popular: você pode até não saber porque tá batendo, mas a sua mulher sempre sabe porque tá apanhando. Brincadeira, hem?

Era isso que o Novalgina me dizia no dia seguinte. Pior que ele tinha um pouco de ra-zão.

Só o fato de contar estas histórias me causam dores por todo o corpo, ainda mais que lembro de outras tantas.
De lá pra cá, me disciplinei e nunca mais comi os abomináveis e transcendentes amendoins.

Já tinham se passados anos, e nunca mais tinha colocado um na minha boca.

Creio que você agora já pode compreender melhor o meu pavor e indignação ao perceber que a cobertura do meu sundae de morango era de amendoim.

Carla não sabia nada a este respeito, muito menos das histórias. Poucos amigos sabiam a respeito desta minha sensibilidade ou alergia espiritual aos amendoins.

Ela simplesmente ficou me olhando de boca aberta, de certo pensando que estivesse vendo algum tipo de surto.

— Meu Deus! O que será desta vez? Vou apanhar de quem? Que merda eu direi para evocar a fúria de um indivíduo ou das massas? Que mal eu fiz, Jesus?

Levantei da mesa dizendo isso. Estava transtornando, gritando como nunca tinha gritado. O McDonald simplesmente parou. Acho que o Centro da cidade inteiro ouviu os meus berros e lamentos. Encarnei o terror e as pessoas me olhavam como se eu fosse um louco.

Não suportando a pressão e o medo do que poderia me acontecer, gritei ainda mais alto, quase tendo um colapso nervoso:

— Eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta!

A esta altura, Carla correu para fora do McDonalds. Ficou apavorada, pois nunca tinha me visto assim. Todos se distanciaram de mim.

Olha, minha fúria era tão intensa que nem a polícia ousou entrar no recinto.

Acho que naquele momento fiz um tipo de catarse, uma espécie de exorcismo sobre aqueles infelizes momentos em que minha mãe me obrigava a comer amendoins e ler em meus momentos de lazer — se é que eles existiam!

— Filinho, come amendoim — era apenas um saco cheio até a boca — para ficar forte e inteligente que nem o tio Super Pateta. Mas não se esqueça de ler estes trinta gibis antes de ir para a escola, pois de noite, antes da tabuada, você me vai ler todos eles novamente, lindinho — dizia minha mãe.

Não é que durante o meu desabafo emocional, estas cenas de minha infância desfilavam na minha consciência como um maldito e apavorante filme de terror. Eram as obscuras reminiscências que afloravam.

Minha crise estava chegando ao limite. O gosto de amendoim misturado com sorvete e calda de morango descia como uma cicuta pela minha garganta. Me senti como um Sócrates desavisado e sem prestígio algum. Cheguei a me imaginar derretendo como um sorvete ao Sol, cheio de moscas e meninos de rua em volta pisando e chutando para ficar com a casquinha.

Que visão mais trágica, parecia com um quadro do Dali. Nada! Aconteceu coisa bem pior.

Totalmente desnorteado, descabelado e suando, busquei Carla, mas só encontrei uma mulher assustada e, atrás dela, um bando de policiais mais assustados ainda.

— Carla, acredite, estou jurando, eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta!

Repetindo isto neuroticamente, caminhei na direção de Carla. A multidão que estava na porta correu para o meio da rua. Os policiais há muito já estavam atrás da patamo pedindo reforço urgente ao PINEL. Um deles até disse:

— Coitado, deve ser tricolor, botafoguense. Será que é do PT? Vai ver que é maluco, mesmo.

Ocupados e desocupados gritavam em uníssono:

— Ah, eu tô maluco. Ah, eu tô maluco. Ah, eu tô maluco.

Enquanto outros diziam:

— Uh, uh, vai morrer! uh, uh, vai morrer!

A porta da lanchonete já parecia à entrada do Maracanã na final de um campeonato. Só que ninguém queria entrar para assistir este jogo: a partida (sem retorno) de Um homem x O seu passado torturando o seu presente.

Atingi, então, o meu limite.

Minha voz podia ser escutada até pelos vereadores da Câmara que por não terem absolutamente nada para fazer da vida, vieram prestigiar a minha tragédia urbana.

— Gente, olha, me escutem pelo o amor de Deus. Sabe por que eu não sou maluco? Porque eu não sou o Pate...

Neste momento, de uma maneira surpreendente, algumas lâmpadas explodiram e houve um curto circuito que apagou as luzes de todo o Centro da cidade. O pânico entre as pessoas se tornou maior do que já era. Eu segurei a cabeça com as mãos e desmaiei, caindo no interior escuro da lanchonete. Assim como as lâmpadas, eu também apaguei. Meu fusível psicológico tinha sido queimado pelos efeitos da leguminosa. Pelo menos era isso que eu imaginava.

Acho que o grande curto circuito mesmo foi na minha cabeça.

Tombei, e, na queda, bati com a cabeça no chão. Mas foi bem mais do que um simples desmaio...

Desfalecido no meio do nada, mas próximo de coisa alguma, uma voz masculina, forte, dizia bem alto:

— Se você quer ter um futuro, olhe para o seu passado, agora. Ação!

Além de não saber se eu era personagem ou espectador, também não fazia a mínima idéia de quem era o diretor desta peça do destino...

Parte II - O cão salivento de Mangaratiba

unTroglodita


Tudo escureceu a minha volta; inclusive dentro de mim.

Acho que não consigo mais enxergar pela vista da sanidade.

Tal qual João que foi arrebatado pelas santíssimas forças do céu e de Nosso Senhor Jesus-Cristo à ilha de Patmos para ver o fim dos tempos, este miserável ser que vos fala era abduzido pelas potências do absurdo para uma cidade carioca; provavelmente para ver o entrópico fim da minha sanidade, bem distante da santidade, corroída por amendoins.

Estou flutuando num lugar desconhecido, mas nem tanto.

Isso aqui é Mangaratiba! — concluí.

Ao passo que ia pairando naquele espaço sem sentido, percebo um cão sujo e muito maltratado que imediatamente me vê. Não sei o porquê, mas somente ele conseguia me enxergar, o resto das pessoas que transitavam pela beira mar ou que conversavam e bebiam nos bares, não.

A atmosfera local estava totalmente preenchida de alegria e ansiedade: era mais um ano que agoniza o seu fim e ensaiava o seu baile da Ilha Fiscal.

Há pouco menos de vinte e quatro horas do terceiro milênio, vejo-me assim: fitado por um cão sujo e faminto que além de babão era dotado de uma percepção extra-sensorial.

As razões pelas quais o destino me enviou, insolitamente, da rua Senador Dantas, no Centro do Rio, para o litoral de Mangaratiba só ele mesmo pode responder. Como não tenho o telefone do destino e muito menos o fax de Deus...vou me sujeitar a esta viagem fantástica. Até porque não tem outra saída mesmo.

Pêra ê! Isso aqui não é musica baiana, não ! É outono no Rio, estou em 1991! Por que, então, me encontro a poucas horas do ano 2000, às barbas de um cão desnutrido, praticamente um retirante etíope que deve ter visto comida pela última vez somente no início do segundo milênio?

Apesar da situação inédita e desconcertante, tive sensibilidade suficiente para enxergar nos olhos daquele animal um grau elevado de compaixão, antes de toda a sua desvalia nutricional. O coitado era pele e osso. Se fosse gente, provavelmente este cachorro, um excluído no mundo globalizado, estaria pendurado em cartões de crédito e cheque especial — furado há um bom tempo.

O dado mais interessante nesse meu surto, que prefiro chamar de sincope traumático-infantil, foi o seguinte:

Se, por um lado, eu plainava à frente de um cão faminto e miserável, mas rico em compaixão; por outro, via um homem com quase quarenta anos que parecia esperar alguém.

Diferente do “canino vidente”, o homem me parecia ansioso; quem sabe com problemas análogos ao do desvalido animal que salivava e babava enquanto o preocupado homem comia igual uma draga, sem se dar conta daquele cachorro que enxergava somente duas coisas: o invisível e o prato de comida do quarentão preocupado.

Longe de ser um Deus, mas, por incrível que possa parecer, encontrava-me num estado de onisciência impressionante porque tais coisas não têm absolutamente nada a ver comigo.

Ainda que estivesse de costas, vi bundas gostosas e adolescentes ávidas por uma aventura antes que o ano velho terminasse.

— Cadê a barca? Cadê a barca?

Era isso que o homem pensava, ao passo que comia e olhava o mar escuro e cheio de barcos piscando na maré de Mangaratiba. Ele era incapaz de virar a sua cabeça e perceber a fome cruel que consumia o já citado clarividente do mundo animal.

A noite já tinha caído, e o destino, mascarado no vento fresco local, me empurrou para mais perto destes dois personagens do futuro.

Odiei esta aproximação até a última instância!

Fiquei exatamente entre os dois e tive o desprazer de sentir um terrível cheiro da batata fria feita com óleo de amendoim reaproveitado em bolinhos de bacalhau. Como se fosse pouco, escutei, aos gritos, uma mulher histérica repetindo:

— Vem cá macaco! Vem cá desinfeliz! Vem senão você não come hoje!

Nem precisei olhar para trás. Era uma mulher gorda, um gênero de “pneu orca”, cuja abundante gordura era circunscrita por um lindíssimo modelito: pequeninas sandálias de dedo em unhas quebradas e mal pintadas, um short amarelo gema e uma indescritível e apertada camisa de malha com a inscrição Feliz 2000 em letras prateadas com purpurina metálica.

Esta incrível visão poderia ser vista até por um cego no escuro, tão ridícula e apavorante que era.

Talvez mais pelo pânico ou pelo absurdo?

Não duvidem: esta bóia multicolorida sobre duas patas era a dona do supracitado animal vidente.

Quanta injustiça — pensei. Tanta concentração de proteína, gula e egoísmo num único ser. Espaço realmente não lhe faltava para agregar tanta estupidez.

— Vem cá macaco desgraçado. Nojento, vem, senão você não come hoje.

Compreendei o porquê da desnutrição daquele condoído ser do mundo animal. E dispenso, por isso, maiores comentários a respeito.

— Não foge de mim que não adianta. Vem pra cá Amendoim!

Amendoim. Bastou aquela filha de uma bóia falar essa maldita palavra para que eclodisse uma incontrolável fúria dentro de mim.

Quando soube que o nome do amável cão era Amendoim, passei a odiá-lo. Quis matá-lo. Tive um surto de desprezo por ele, sua dona elefanta e o homem que só pensava: “Cadê a barca? Cadê a barca?”

Tive tanta raiva que caí no chão com o rosto virado para o mar, podendo ver, então, a barca iluminada que chegava da Ilha Grande.

Por algum motivo oculto, fui visualizado pelos três personagens. Eu estava de quatro, com os olhos vermelhos, chorosos e babando pelo canto esquerdo da boca mais do que um animal com sede.

Este infeliz deserto de tensões me exauriu de tal forma que não conseguia odiar ou amar qualquer coisa, inclusive aqueles três e toda a situação. Me tornei o nada diante do absurdo que era mais real e concreto que qualquer coisa já presenciada por mim em todos esses anos de vida.

Nada mais me espantava. Ao contrário, a minha trina fantástica desfez-se, apavorada, diante do incompreensível. A betoneira proteinada foi-se, nervosa, porém não menos magra, apenas um pouco enrubescida pelo insólito susto. A desgraçada suou, mas seu peso continuou inalterado. Sem parar de grunir e chorar, o cão baixou as orelhas, meteu o rabo entre as pernas e seguiu caminho com o seu carrasco de geladeira. O homem achou impossível continuar comendo naquele lugar mal assombrado e pediu a conta. Em seguida, caminhou perdido em direção do píer. Ele só pensava nas dívidas que tinha e na barca que se aproximava da marina com sua mulher e os dois filhos que voltavam de uma semana de férias.

— Onde foi que errei?

Esta pergunta incomodou simultaneamente a mim e o tal homem. Por quê? Que falha existencial aquele desgraçado sem compaixão e eu poderíamos ter cometido a ponto de sermos inquiridos pela mesmo coisa? Eu aqui, não sei onde, e ele lá, no mundo que também é o meu.

Os três ainda olharam para trás e em viram, de pé, dissipando-se no ar, misturado a poeira do chão. Minha imagem desapareceu diante deles como uma visão bíblica, mas sem conteúdo e cheia de interrogações e pavor.

— A barca chegou — pensou o homem.

Acho que a minha estada por aqui também já chegou...ao fim.

Estando no futuro, me pergunto:

Será que terei um?

Parte III - Na antecâmara da sanidade

unTroglodita


Como num passe de mágica, uma voz masculina me subtraiu de Mangaratiba, fazendo-me viajar — sem sair do lugar — por “histórias” pitorescas, onde eu era a única testemunha — ou prisioneiro?

Me sinto como um espectador num cinema, num planetário, sei lá. É tudo muito confuso.

A tal voz então disse:

— Ter um futuro, ou não, está em suas mãos. Tudo vai depender exclusivamente de você. A resposta é clara: Amendoim...

Não me considero uma pessoa lá muito religiosa, mas se esta voz era de Deus ou coisa próxima disso, fiquei indignado com a falta de consciência e compaixão, pois citar esta palavra desgraçada era tudo o que eu menos precisava naquele momento desafortunado. Apesar disso, o tom da voz era suave, carinhoso, quase materno.

Repito: não sou uma pessoa religiosa e espiritualista, acho que até nego muito isso em minha vida, mas comecei a compreender um pouco mais os prejuízos e o infortúnio que assolaram a vida mansa de Jó.

Será que Deus não tem pena ou consciência de minha dor? Ah, já sei! Além de nunca ter comido amendoins, Deus não tinha uma mãe chata e totalitário como a minha. Mas...Deus não é o senhor de toda a gênese? O Mestre da criação que arquitetou todo o universo visível e invisível? Como Ele pode não saber, então, o que é um amendoim? Tem alguma coisa errada nesta história. Eu que não sou porra alguma neste mundo criado pelo Incriado sei na pele o que é esta merda, como é que o Pai do Nazareno não sabe?

Eu só não digo que Deus não tem mãe porque parece que há uma lorota aí a respeito de uma Virgem Maria e um tal de Espírito Santo.

— Chega de especulações, seu teimoso! Assista a sua salvação..., Amendoim...

Não sei onde estou e muito menos para onde irei, mas já me mandaram para lá sem o mínimo consentimento. Viajo, portanto, a contragosto e com o gosto amargo dos malditos amendoins em minha boca.

Parte IV - O Eugênio da garrafa

unTroglodita


Esta história se perde nos anais do tempo...

Num país de dimensões continentais, onde a propaganda eleitoral era gratuita, mas o serviço militar e o voto eram obrigatórios, viveu um homem fantástico, o mais hábil e inescrupuloso político já visto na vida pública daquela grande nação. Seu talento para a perfídia e o maquiavelismo era tão assombroso que nutria a admiração e o respeito dos mais ferrenhos adversários. Até os homens de bem veneravam aquele arquiteto maior do ilícito. O homem era o diabo. Seu nome: deputado Eugênio Callado Netto; ou, como era conhecido nos bastidores políticos, Eugênio “o gênio”, pois era capaz de realizar verdadeiros milagres políticos nas condições mais adversas. Não existia cartola que o gênio de Eugênio não tirasse um coelho — nem que fosse uma cutia caiada de branco e alvejada de sem-vergonhice.

No entanto, o seu imbatível reinado de impunidade estava chegando ao fim. Depois de monopolizar e manipular sem um pingo de escrúpulo a política nacional durante décadas, seu juízo final já podia ser visto nos horizontes da quimera.

O deputado tinha um fraco que ele costumava dizer — nas alcovas — que era o seu forte: mulher. Por elas, Eugênio despendia rios de dinheiro, o que não era problema para este insuperável mestre da intriga.

Mas foi numa dessas... que a casa caiu.

Era de domínio público o horror que Eugênio nutria pelos insetos de uma maneira geral, especialmente pelas baratas. Não é que em uma de suas empreitadas amorosas, num luxuoso motel, ele não fez o maior escândalo porque se deparou com uma barata voadora saída da banheira, onde ele se encontrava com três mulheres num licencioso bacanal! O homem saiu nu no meio da rua e foi fotografado pelos paparazzi de plantão. No mesmo dia, em edição extraordinária, os noticiários de todo o país diziam: Deputado Eu-gênio Callado Netto é flagrado com seu assessor, o Cláudio Baratta, num motel.

Já não dava mais para esvaziar o fato e retroceder com esta nota mentirosa, injusta. Ninguém podia acreditar, nem as grandes bichas. O maior macho de plantão da república era frutinha.

— E logo com o seu secretário; quem diria, hem? Medo de barata? Que nada!
— Isso porque ele era “Callado”; se o Eugênio Netto é assim...imagina só o avô!

Este foi o diálogo entre os dois maiores opositores do deputado. Naquele tempo, ser larápio não bastava, tinha que ser um gênio, e Eugênio era um! Mas toda a sua inteligência e influência ($$$$) não foram suficientes para abafar aquele escândalo nacional.

Sua vida familiar e a longa carreira política intocável foram arruinadas do dia para a noite. Como o fato ocorreu antes do carnaval, o “escândalo da Baratta” foi o símbolo maior do carnaval gay naquele ano que acolheu o deputado como expressão maior do movimento nos dias de folia.

— Que desgraça! Que decadência! Ser achincalhado como um veado ladrão em plena folia de rei. É o carnaval que a oposição queria.

Assim Eugênio falava sozinho num bar, onde estava arruinado, deprimido e bêbado.

— Meu Deus — quem diria!, pois o Eugênio era um ateu convicto — qual a melhor saída? Nem me matar eu posso porque o meu assessor, o Baratta, um homem íntegro e familiar, se suicidou. Se eu me matar agora, aí é que falarão mal de mim: vão dizer que foi um pacto mortal entre as duas bichas apaixonadas. É o fim. Não posso viver em paz e muito menos morrer tranqüilo.

Depreciado e humilhado, Eugênio bebeu até não poder mais; até porque o poder..., Eugênio não possuía mais. Ele deprimiu tanto, mas tanto que sentiu esvair-se de toda a sua auto-estima. Sucumbiu a ponto de perder o sentido de identidade. Debruçado no balcão do bar, quase caindo em cima da garrafa, o falido político perguntou a si mes-mo:

— Quem sou eu?

E respondeu.

— O gênio.

Esta foi, finalmente, sua maldição: o deputado Eugênio “gênio” Callado Netto perdeu o seu ego, o eu. Ele tornou-se imortal, um gênio, praticamente um Deus. Apoiando-se nos dois braços, bêbado e olhando para o fundo da garrafa vazia, ele atingiu um nível depressivo tão intenso que encolheu e caiu no fundo da garrafa.

O garçom, bichinha, ao ver vazio o local onde estava o deputado, nem pensou, pegou a garrafa, fechou e guardou-a como um símbolo fálico e masturbatório de idolatria gay.

— Nooossa! A garrafa do “Eugênio Baratta” é minha. É a glóóóória — falava or-gulhosa, o garçom, bichinha afetada.

Não sabia ele que estava selando o destino e a eterna sentença do deputado ex-Eugênio; agora, o gênio.

A linda garrafa, onde ficou aprisionado, só tinha beleza: a bebida era a pior coisa já produzida sobre a face da Terra. Corria um comentário entre os bebuns que aquela bebida era tão ruim que chegava a ser usada como inseticida — contra baratas.

Como o mal do deputado foi o Baratta (ou a barata), esse drinque vagabundo o fez dormir e hibernar durante séculos e séculos em lugar ignorado até que um dia...

— Guiaaarrafieiro, guiaaarrafieiro, comprooo i viendo jornaaais.

Bem ao longe, numa rua moderna e muito arborizada, vinha cantando um garrafeiro que acordou, após séculos, o adormecido e amaldiçoado deputado Eugênio “gênio” Callado Netto.

Como de costume, o ambulante abriu o coletor comunitário de garrafas para a devida reciclagem. Olhando para o painel flutuante de luz ondular, ele piscou os seus olhos uma vez e acionou, assim, a limpeza solar seca das garrafas. Ao concluir a assepsia do material coletado, o experiente homem se enamorou de uma das garrafas. Ele então pegou-a com a sua velha boina marrom e abriu a secular casa do Eugênio.

Uma profusão de feixes de luz vermelha metálica saíram da garrafa e deram forma, após um longo confinamento, ao mestre do ilícito.

O garrafeiro não se mexeu, e muito menos se espantou diante da pirotecnia que fez surgir o deputado, que não perdeu tempo.

— Meu simpático senhor, olha aqui, eu sou um gênio; ou melhor, um homem amaldiçoado.

— Quem? Eugênio?
— Não, não! Somente um gênio que para voltar a ser humano precisa lhe atender um pedido. Compreende?
— Sei — respondeu com desdém.
— Homem, eu quero a minha liberdade. Peça o que quiser: mulher, dinheiro, poder e todas as riquezas que eu lhe atenderei.
— Sei — continuou indiferente.

O gênio Eugênio se irritou.

— Sei, sei! O que você sabe tanto, hem? Não gosta de dinheiro? Não tem fascínio pelo poder e o que ele pode lhe proporcionar? Sou um político e sei muito bem o que significa um homem investido com as benesses nababescas e babilônicas do poder. E mulher, também não gosta?

Sem saber, o velho garrafeiro estava preste a finalizar o suplício do político engarrafado.

— Olha, seu gênio, dinheiro...eu tenho, poder...não necessito.
— O quê? Você quer trabalhar o resto da vida como um garrafeiro, seu carcamano imbecil?

O sábio garrafeiro ficou indignado, insultado com as palavras do gênio.

— Seu gênio, não sei quanto tempo o senhor ficou preso em sua garrafa, mas hoje, em 2875, não precisamos mais destas oferendas e paparicos; e muito menos de políticos, ainda mais com o seu perfil.
— Como? 2875! Quer dizer que eu fiquei quase mil anos preso? Nem o diabo ficou tanto tempo no inferno. Você...

O velho garrafeiro era um sábio, e logo interrompeu o gênio revoltado.

— Bem, meu pobre diabo, vou te dar uma chance. Quero que você me conceda um pedido que se realize instantaneamente, tudo bem?
— É lógico, é só pedir — respondeu ardilosamente com a cabeça baixa e o olhar de cachorro traiçoeiro para cima.
— Eu quero que você se transforme numa barata.
— Nããão! — gritou desesperado.

Mas já era tarde. O deputado Eugênio “ortóptero onívoro” Callado Netto, ex-gênio, se transmutou no seu próprio escândalo.

Friamente, o garrafeiro pisou em cima do ex-gênio, agora barata, e matou o mesmo, ou a mesma, dizendo:

— A humanidade não precisa de um ser humano como você, seja no passado, no presente e muito menos no meu tempo, criatura desprezível. Quer saber mais? Hoje é quarta-feira de cinzas, além do mais, eu sou muito bem casado.

Ele esfregou o sapato no chão para limpá-lo e voltou ao seu trabalho através daquele bairro ecologicamente perfeito.

Minutos depois, passou um rato (um espécime raro naqueles dias) e comeu os despojos do ex-tudo: o Eugênio, ex-gênio tinha virado comida de roedor.

Não havia mais Eugênio, gênio ou barata, somente um rato bem nutrido e satisfeito.

Para quem sempre foi um rato em torno do erário, terminar como barata e ração quase mil anos depois...não é nada injusto.

— Guiaaarrafieiro, guiaaarrafieiro, comprooo i viendo jornaaais.

Parte V - O homem cocó-ri-có

(Dedicado a Leonardo Carvalho, o "Leo neura")

unTroglodita


“...Mulheres são como bananas: doces, porém com uma singular e periférica acidez. Portanto, são como as guerras: um mal necessário que devemos engolir — às vezes verde, com casca e tudo!”

Assim, em cima dos seus 40 anos, pensava o Figueira, um talento da matemática, exímio analista de sistema, especialista em banco de dados que terminou dedicando-se exclusivamente a química depois de trabalhar por quatorze anos numa organização não governamental, em Botafogo, no Rio de Janeiro.

Entretanto, Figueira era estranho não somente por esse ponto de vista, mas por muitos outros. Ele não poupava nem Deus.

— Deus pode ser tudo, criador de todos, mas não posso considerá-lo grande coisa porque uma mente que cria uma humanidade e a coloca num planeta (que já não é grande coisa, também!) com reservas pífias de água potável pode ser tudo, menos um grande administrador, ou algo que se equipare ao status que as infelizes religiões lhe conferem.

Pra piorar a situação, nem ateu o desgraçado era. Aliás, seria muito difícil saber o quê esse infausto ser poderia vir-a-ser, pois ele pouco comia e se alimentava. Não fumava, nem trepava, além de abominar qualquer tipo de relacionamento, fosse com seres humanos, ou até mesmo com um amistoso animal. Criança...? Nem se fala!

Portanto, Figueira não era apenas um filho-da-puta, mas também um ser desprezível pela própria exoticidade — coisa bem típica de seu caráter, ou mau caráter.

É bem plausível concluir-se que uma criatura com este perfil, jamais tivesse algum tipo de laser, ou mesmo algo que lhe desse algum tipo de prazer.

Pois bem, o desgraçado tinha algumas coisas que lhe proporcionavam alguma satisfação, sim. Conhecer e criar acrônimos — pois sabia praticamente todos existentes! — e estudar as características da vida no período azóico, da era proterozóica, lhe trazia grande alegria e satisfação; embora nesta época de nossa evolução planetária tenha como característica a solidificação da crosta terrestre. Nesta época, a vida em si era praticamente um artigo de luxo, onde o ser humano, propriamente dito, sequer estava nos colhões da criação.

— Seja lá o que venha a ser Deus — pois no fundo estou me lixando para esta crendice subumana! — há quatro bilhões de anos é bem provável que esta praga sufocante não existisse. O mundo deveria ser bem melhor — dizia o Figueira ao estudar os seu livros de história, geografia e geologia.

No entanto, ela tinha dois grandes prazeres, sim!

Um deles era ler bulas de remédios e toda sorte de composição química em todos os produtos. Alimentícios, cosméticos, íntimos, limpeza, ele lia, sem exceção, todas as fórmulas sem saber muito bem o porquê, mas sem que ele se percebesse..., Figueira era acometido por ejaculações espontâneas, sem ereção.

Diga-se de passagem: até então, Figueira nunca tinha tido uma ereção.

O outro grande prazer desta criatura, era se alimentar através do uso abusivo de condimentos e temperos artificiais. Maggi, Knorr, Arisco, Saborami, Sazón, Aji-Sal e Aji-No-Moto eram alguns dos condimentos que ela mais adorava combinar com seus macarrões instantâneos que, aliás, era a única coisa que ele realmente comia . No máximo, ele tomava uma sopinha, também instantânea e super condimentada com seus temperos industriais.

Os anos se passaram, e Figueira foi se alimentando unicamente dessa forma. Outros hábitos seriam agregados a esta dieta, tais como o de comer diariamente várias carreiras de pasta de dentes, as quais ele tinha todas as marcas, inclusive as extintas Kolynos e Ultrabrigth.

Coisa curiosa: um dos seus maiores pavores era imaginar o dia em que a sua Ultrabrigth acabasse. Quase toda a semana Figueira tinha esse sonho, um pesadelo que passou a ser recorrente.

Quanto às pastas de dente para gengivas sensíveis, seu ponto de vista era o seguinte:

— Esse produto é coisa de veado!

Não tiro sua razão, pois ele tinha uma gengivite crônica desde a infância: um período não muito afortunado de sua medíocre vida. Quando era pequeno, na Romênia, seu pai o obrigava a escovar os dentes à força, pois achava tudo aquilo uma tremenda fraqueza de filho-da-puta, frescura de veadinho. Sua mãe, por sua vez, passava óleo de amêndoas doce, para aliviar o trato paterno.

Ah..., Figueira era romeno e teria nascido — segundo os registros que ele guardava como um segredo de vida e morte —, em Bucareste, na hora de uma dos mais esperados eclipses do século XX. Mas quando sua família se mudou para o Brasil, ele decidiu sepultar para sempre o Gheorghe Lugus, seu nome de batismo.

Dois, cinco, dez anos se passaram, e o Figueira não comia outra coisa que não fosse isso. Durante este tempo, é claro que o seu prazer flácido e ejaculativo em ler bulas e composições químicas dos produtos levaram-no a se aprofundar nos mistérios da química e da biologia molecular. Ele tornou-se, antes dos quarenta, um gênio da ciência.

Após quinze anos mantendo essa dieta maravilhosa e já contando com a idade de 37 anos, o desgraçado começou a manifestar coisas estranhas; pelo menos mais estranhas do que ele mesmo...

Era madruga, lua cheia de agosto. Figueira não conseguia dormir. Sentia-se ansioso e bastante incomodado com algo que não conseguia identificar. Após suar e rolar horas e horas a fio em sua solitária cama de casal, ele foi ao banheiro. Pois bem..., para nosso espanto, o cara se quer ficou impressionado com o que viu no espelho.

Figueira tinha sofrido uma mutação genética!

Toda a pele de seu corpo passou a ser composta por pedaços de produtos que faziam parte de sua dieta alimentar. Seu corpo tinha se transmutado numa multiembalagem. Papelão, plástico, vidro e alumínio eram alguns dos elementos que agora compunham o corpo deste gênio científico. Mostarda, Ketchup, molho inglês, sabão em pó, Figueira mais parecia uma gôndola de supermercado num outdoor de rua.

Mas não era só isso! Duas partes de seu corpo expressaram os traços mais marcantes desta súbita mutação.

Sua cabeça — inteligente —, mas naturalmente composta por um rosto feio, inexpressivo e sem um pingo de encanto, agora era dividida pelo símbolo dos produtos Knorr, a galinha. Já o seu pau, vergonhosamente diminuto, fino e impotente — que até a presente data nunca tinha tido serventia alguma —, tomou a forma de um falo taurino. Sua pica tinha ficado vermelho e branco e com dimensões bovinas mais que avantajadas. Era um reflexo do Touro, o símbolo dos produtos Magi.

O cara tinha ficado tão esquisito que se Daniel, o decifrador de enigmas do Velho Testamento o visse nu durante uma visão, com absoluta certeza teria um surto ao tentar compreendê-la.

Figueira simplesmente olhou para espelho, ficou feliz e sorriu.

— Se Deus existe, e se sou imagem e semelhança deste filho-da-puta, a revolução industrial e todo o consumismo é o que ele fez de melhor. Eu, portanto, sou a representação do melhor.

Então, aos 37 anos, Figueira tocou a primeira punheta de sua vida. Sua piroca descomunal gozou — de forma abundante — um liquido quente e enfumaçado de tom laranja acinzentado. Figueira ejaculou sopa instantânea sobre seu colo, mãos e todo o assoalho, onde podiam ser vistos pedaços de legumes, carne e macarrão, discretamente mistura-dos com ketchup picante da Cica. Eram esguichos e mais esguichos muito bem servidos de sopa instantânea, não das de envelope, mas sim das enlatadas, as quais ele mais se afeiçoou.

Possuído de emoção, em prantos com gosto de Aji-No-Moto que ele prazerosamente engolia, Figueira se ajoelhou e bebeu o seu novo sêmen, colhendo-o respeitosamente com suas mãos, como se o mesmo fosse um sacramento.

Enquanto bebia, uma voz que vinha de todos os lados lhe disse:

— Gheorghe Lugus, eu não esqueci de ti. Em momento algum te abandonei. Sempre estive contigo, mas de agora em diante seremos coisa única. Ouça! Preste atenção! Dê isso ao mundo, ele já se encontra grávido deste dom.

E Figueira, quem diria, falou com Deus. Olhando para o espelho como se fosse um profeta do Próximo Livro, o hibridismo transindustrial disse, com a sopa espermática escorrendo pela sua boca, caindo por todo o corpo e espalhando-se pelo chão:

— Seu veadinho filho-da-puta, quer dizer que você realmente existe? Pois eu darei ao mundo e suas criaturas o que eles tanto desejam.

E assim foi feito!

Do dia para a noite, Figueira se transformou numa celebridade mundial, passando a ser destaque em toda a mídia planetária. De sua vidinha medíocre de matemático, num conjugado de Niterói, ele adquiriu fama fosforescente no estado, no país, chegando a todos os continentes do globo como o ser, o protótipo da nova raça emergente, tão anunciada por místicos no final do século XIX.

Até a Nature estampou sua transformação com a seguinte chamada: “Picasso ou Mendel? Não! É Figueira, o cubismo alimentar da biogenética!”

De um obscuro matemático, mas genial químico, Figueira praticamente alçou-se como um guru da nova alimentação. Sem saber, a humanidade ingressava na Era do Código Alimentar Figueira, um estilo de vida nutricional que tinha tudo para mudar não só o rumo da história, mas da própria sanidade humana.

Para a humanidade, a nossa mutação carioca-niteroiense tinha se tornado mais do que um simples orientador dos incipientes: Figueira se metamorfoseou num símbolo de salvação, um messias.

Deixando de ser pessoa — aliás, coisa que este imprestável nunca foi — para se tornar uma giga instituição transnacional imoral e sórdida, a Figueira CIA — Companhia Interacional do Alimento — cresceu em menos de três anos mais do que qualquer religião desde que o mundo é mundo — ou imundo?

Criado o Código Figueira, um sucesso literário que bateu todos os best-sellers exotéricos ou de auto-ajuda, alcançando recordes de vendagem nunca vistos até então no setor editorial, o alto comando de sua organização criou — ocultamente — o Index Ficus, o plano secreto de dominação que listaria tudo que poderia por em perigo o domínio e o conseqüente poder da Era Figueira no seio da raça humana. O Index citado tinha a suprema preocupação de expurgar e exterminar da face da Terra os homeopatas, pajés e xamãs, nutricionistas e nutrólogos e todos os que se dedicavam de alguma forma às tradições e práticas de cura e alimentação naturais.

Mas publicamente sua vida era outra. Entrevistas, festas de caridade e constantes viagens moviam a vida e a agenda do ocupadíssimo senhor e messias de um novo tipo de humanidade. Em suas aparições públicas, uma peculiaridade marcava sua presença: Figueira quase não usava roupa porque o maior atrativo era exatamente a superfície de seu corpo: um mosaico do que poderia vir-a-ser a raça humana dali há algumas décadas, com piroca Magi e tudo mais.

Portanto, Figueira faturava bilhões e bilhões de Columbus das industrias de alimentação química.

Quase na metade do século XXI, ele já contava com 42 anos. Como o cara tinha mudado! Agora bebia, fumava, usava drogas, fodia. Até no cu, o Figueira já tomava. Veja só, uma de suas maiores satisfações sexuais agora era ser enrabado por negros bem dotados, os quais tinham que besuntar seus caralhos com pasta de dente para gengivas sensíveis, misturadas a pasta rosa. Assim o desgraçado gostava de tomar no cu.

Mas desde a sua transformação, os agentes mutagênicos fizeram com que o Figueira parasse de ejacular sopa instantânea e passasse a gozar, com dores indescritíveis, glutamato monossódio; fato que o deixava mais satisfeito e excitado. Seu gozo passou a ser absolutamente seco, arenoso e cheio de dor.

Ano de 2041. Chegou a época da CIA implantar o mais importante projeto já arquitetado pelo agora laureado Nobel da química. Mas como todo ciclo, este momento já descreveria a decadência e a queda do maior fenômeno genético da raça humana.

Durante anos e anos, Figueira tinha estudado — secretamente — filosofias ocultas, tendo estado em muitos centros espalhados pela Ásia, onde pôde conhecer o caráter oculto do som, bem como os seus reflexos em composições e estruturas químicas. Foi esta ba-se científica-oculta que possibilitou o desenvolvimento do Vita A-Z: um suplemento alimentar modificado nanotecnologicamente, conhecido na CIA como uma ferramenta de expansão e dominação nanoaudiodigital. O grande segredo: o kit vitamínico era vendido com uma lâmina digital de silício, onde estavam programadas escalas musicais que ativariam gradualmente o consumo de determinados produtos, mais precisamente dos aditivos químicos que efetuariam a tão desejada mutação — além de fazer subir os índices das ações de todas as empresas que produziam condimentos e alimentos pré-prontos, as quais a CIA era acionista majoritária.

Apesar dos grandes planos e do sucesso vindouro, sua tragédia estava cada vez mais próxima.

O Vita A-Z, enfim, foi lançado, alcançando rapidamente o êxito previsto. Bilhões e Bilhões de crianças, jovens, adultos e idosos passaram a consumir o novo produto da CIA, que obrigatoriamente integrava-se ao Código Figueira. A raça humana consumia o Vita com se ele fosse o próprio oxigênio.

O faturamento mensal em Bilhões de Colombus — a moeda transcontinental da época — foi tão extraordinário que a fortuna do presidente da CIA não podia mais ser mensurada dentro de parâmetros formais: ela tinha se tornado um complexo exercício de abstração financeira.

Passado uma semana, Figueira tinha mais capital concentrado que todas as fortunas da Terra juntas. Ouro, columbus, ações e as commodities mais diversas, inclusive as ambientais, estavam agora sob o seu controle deste Jesus — às avessas.

O segundo passo de sua conquista era sua maior ambição: Figueira queria entrar em contato com seres e civilizações extraterrestres, e assim levar suas idéias para outros mundos, nos confins do universo. Meio caminho já estava andado, pois a NASA estava toda em suas mãos. Quem diria, o mundo era pequeno demais para comportar o febril desejo de expansão e poder deste mutante do século XXI.

Dias após, como fazia há anos, Figueira acordou e fez as suas matinais carreiras de pasta de dente, mas, para sua funesta surpresa, a Ultrabright que ele tanto gostava, tinha terminado, e não havia mais nenhuma em sua dispensa. Era o fim! O bem sucedido mutante não sabia, mas esta pasta de dente específica era um importante componente psicoquímico em sua transformação. Figueira resolveu que não iria trabalhar naquele dia: estava deprimido. Além do mais, ele tinha uma importante entrevista em cadeia mundi-al, ao vivo, onde ele revelaria ao mundo os seus planos de expansão alimentar transplanetária.

Durante toda a manhã, ele esteve muito mal. À noite, na hora da tão esperada coletiva, Figueira se sentiu ainda pior. Embora sem nenhum mal físico, mentalmente ele estava péssimo, bastante abalado, mais transfigurado que um lobisomem.

Antes da coletiva, no entanto, o farrapo mutante se trancou em sua sala, na CIA-Com, e consumiu, em sacro respeito e desespero, alguns pedaços de bloco sanitário, juntamente com algumas boas talagadas de fluído, aquele de isqueiro, mesmo.

Mas já era tarde, e a noite logo, logo cairia como uma desgraça sobre o Figueira.

Tumulto, Luzes, holofotes, repórteres por todos os cantos e muitos curiosos, assim estava a plataforma de comunicação da estação CIA, onde se realizaria a entrevista. O evento teve início, e logo nos primeiro minutos, pouco antes da declaração, o infeliz painel publicitário começou a gaguejar, com fortes indícios de confusão mental, balbuciando coisas sem sentido. Em seguida, de forma mais surpreendente do que a sua própria mutação, Figueira começava a exteriorizar um processo de decomposição ampla em seu corpo. Parecia irreversível!

Ele estufou. Ao mesmo tempo, gotejava e enferrujava, derretia e rasgava-se em muitos pontos; tudo acompanhado de um insuportável e podre odor que se espalhava por todo o ambiente.

Alumínio, papel, plástico, borracha, vidro, todo o seu corpo cubista seminu estava se decompondo ante aos olhos de todo o mundo.

Figueira estava retornando às origens e se transformando no que realmente sempre foi: lixo.

Revolta, escárnio e risos, Figueira gerou um clima de indignação e desapontamento entre todos. Ele foi linchado severamente, e em seguida jogado no meio fio da própria empresa, já aos pedaços.

Seu poder se desvanecia mais rápido que o seu próprio fim.

Compreendendo que aquilo era apenas um monte de lixo fora do eliminador de resíduos, o operador público que passava nem pensou: recolheu o mesmo e o enviou para uma estação depuradora. Lá, praticamente no fim, aquele monte abjeto foi deixado ao ar livre, onde foi devidamente devorado por roedores, cachorros, insetos e muitos desvalidos que ainda se alimentavam de sobrar e rejeitos naquele imenso lixão.

Vivendo os últimos resquícios de sua organicidade, curvado e deitado de barriga para cima, o olho esquerdo de sua face híbrida humano-galinácea, dispensou um corrimento vermelho: era sangue ou um novo milagre de conversão? Que estúpida esperança a sua! Aquilo nada mais era do que um corante que se dissolvia sobre sua face mentirosa.

E pela última vez, Deus falou com Figueira. Seu tom era absolutamente louco, sádico:

— Inosinato dissódico, ácido lático, seqüestrantes e estabilizantes, benzonato de sódio, acidulantes, sorbato de potássio...

Confortado em seu coração — se é que ele teve isso alguma vez na vida —, Figueira sorriu e viu quando um Urubu faminto pousou em sua barriga e começou a arrancar o seu gigantesco órgão genital monorquídico. Quando definitivamente conseguiu desenraizar aquela maravilhosa ração, o urubu voou, mas no solo, Figueira deu o seu último gozo de dor e prazer, que pôde ser ouvido até nos confins do universo. Ao passo que o carrasco de asas alçava a sua viagem, o despojo venéreo de Figueira ficou duro e começou a gozar uma quantidade indescritível de glutamato monossódico e sopa enlatada. Ereto em suas patas, o urubu não suportou o peso da piroca ejaculante e voadora, largando-a sobre um manguezal próximo a Baía de Guanabara, que magicamente se transformou numa ilha de glutamato monossódico.

Anos, décadas se passaram, até que o lugar virou um ponto turístico. Para ser mais preciso, a ilha de Glutasó se transformou numa sacra região de romaria e adoração fálica e afrodisíaca, onde a única alimentação servida aos visitantes — humanos e extraterrestres — era sopa enlatada, com pitadas da mítica areia da região.

P.S.: Este conto conquistou o 1º lugar no concurso da Editora Cartaz, patrocinado pela Prefeitura de Araruama/RJ, sendo publicado, sem seguida, no livro Letras em Cartaz - Contos, Crônicas e Poesias, juntamente com os outros dois contos que compõe Quadrilátero - Uma Realidade Urbana: "Eugênio da Garrafa" e "Rapto Eletrônico".

Parte VI - Rapto eletrônico

unTroglodita


“Mas que sujeitinho chato! É Por isso que os pais não o suportavam. Tem mais é que pagar caro e fazer cinqüenta anos de análise, filho-da-puta. Vai amolar o Freud, porra!”

Todo final de mês era a mesma rotina.

À medida que os pacientes pagavam os honorários pelas sessões, a Dra. Tatiana fazia uma crítica mental sobre a enfadonha problemática que cada um tinha. Adolescentes, idosos ou adultos, fossem homens ou mulheres, nenhum era poupado. Ela simplesmente não tolerava aquele bando de desajustados, apenas os suportava em função dos elevados preços de suas sessões, pois não se sentir afeiçoada por seus pacientes e suas loucuras era uma coisa, mas não gostar de dinheiro e da conseqüente renda que eles lhe proporcionavam, era a pior de todas as insanidades.

A laureada psicanalista tinha construído uma carreira acadêmica mais que respeitável como membro fundador, conselheira e mestre da Sociedade Psicanalítica do CU. O CU nada mais era do que um Centro Universitário referência, onde se formava a elite que cuidaria das ossadas psíquicas e indesejáveis da sociedade bem remunerada e, portanto, apta a despender caminhões de dinheiro com os mestres da psique.

Além de toda esta augusta reputação, Tatiana possuía virtudes que toda mulher adoraria ter, mas que normalmente só podia mesmo é invejar: era culta, inteligentíssima, extremamente bonita, gostosa, atraente e...rica, muito rica. Apesar de todos estes dotes, a balzaquiana Dra. nunca teve um relacionamento sequer com homem algum. Digo homem porque esta era a sua praia. Ela detestava as mulheres de uma forma geral, mas abominava as prostitutas com um fervor quase nazista.

A Dra. Tatiana seria capaz de atender um pobre — contanto que o mesmo pagasse —, mas jamais teria uma prostituta ou qualquer garota de programa como sua cliente.

No fundo, no fundo, esse “enigma psicanalítico” odiava frontalmente duas coisas neste mundo: pobre e prostituta. Quanto a Deus e a religiosidade humana..., ela não dava a mínima.

— Quanto mais deuses e religiões..., melhor para mim! É mais dinheiro que sobra. Meu paraíso é aqui e agora. O céu e suas recompensas, Deus e os anjos são migalhas para os miseráveis que tem mais é que se foderem na vida. Não sei se o inferno ou a vida após a morte existe, mas se existe algo assim, gostaria muito que todas as prostitutas e pobres fossem trancados e acorrentados lá para sempre.

Duro pensar deste jeito, não? Que nada! Tatiana levava tudo isso no bico, com a maior facilidade e alegria do mundo.

A única coisa realmente estranha era o fato dela não ter tido nenhum namoro firme até a presente data. O tempo já tinha passado, Tatiana estava com trinta e cinco e ainda não tinha tido filhos. Por quê?

O dia cinco ia se aproximando, e a Dra. Tatiana começava a descascar o seu rosário de críticas. Dinheiro vivo, cheque, até dólar ela aceitava. A única coisa que ela realmente não aceitava e suportava eram os seus pacientes. Malucos, neuróticos, psicóticos, todos procurava o suntuoso consultório da Dra. Tatiana, na esperança de darem um rumo na vida. A despeito de toda a repulsão pelo seu séqüito de desajustados, a fama e a excelência profissional dela eram conhecidas e respeitadas até no estrangeiro, onde ela também ocupava posições de destaque, fosse como professora, consultora ou laureada pa-lestrante de congressos que lhe rendiam fábulas financeiras invejáveis.

Como pode uma mulher tão bonita, atraente e gostosa não ter uma paquera sequer? Não sei! Mas que era estranho, ah, isso era! Homossexualismo ela não curtia, pois, como já disse, Tatiana não suportava as suas congêneres, ainda mais se fossem putas.

Bem, voltemos ao dia cinco porque este era o dia limite estipulado para o pagamento dos honorários da ilustre Dra. Tatiana.

Certa ocasião, um paciente perguntou se não poderia pagar no dia seguinte. Ela então disse para o mesmo aguardar. Sabe que a Dra. mandou chamar a polícia para prender o seu paciente?

Pois era impreterivelmente neste dia, no último horário da sexta-feira, de sua disputadíssima agenda, que Eduardo Cabul, o Edy Piano, pagava a Dra. Tatiana.

Detalhe estranho. Piano sempre pagava a Dra. do mesmo modo: quatrocentos reais divididos em três notas de cem, e o restante em notas de dez, dentro de um envelope marfim escuro, de gramatura pesada e ligeiramente áspero. Já tinham se passados três anos e meio e o Piano não mudava uma virgula neste seu inquebrantável ritual — que fazia parte de sua psicose.

Sabe o mais estranho? Este era o único paciente ao qual Tatiana não fazia uma única crítica durante o pagamento dos seus honorários. Ela tinha um medo indescritível do Edy Piano: um caso que lhe foi indicado por um medalhão do CU. Não tendo como recusar, ela terminou aceitando uma sinuca de bico, da qual não sabia sair de jeito algum, apesar de sua grande experiência clínica — ou cínica — com todo tipo de maluco.

Ah, antes de começar o seu período de análise, Piano ocupava o cargo de analista financeiro num dos mais prestigiosos bancos do mercado europeu. No entanto, para sorte dele e azar do mercado financeiro, um dos seus mais notáveis passatempos era pôr em prática os seus geniais dons de racker.

Ao contrário de Tatiana, Piano odiava o dinheiro mais do que a sua própria profissão de economista e analista financeiro. Ele tinha um desprezo tão intenso pelo dinheiro que terminou lesando em bilhões de dólares o mercado acionário de dois continentes.

Embora ela não deixasse transparecer, Piano sentia que a Dra. Tatiana lhe temia mais do que tudo neste mundo. E ele, como bom sádico sociopata, adorava a situação, tanto que perpetuava há mais de três anos as torturantes sessões de análise: a tábua de salvação que o livrou de uns bons anos numa gaiola penitenciária.

Acho que Piano foi a única pessoa que realmente conheceu a Dra. Tatiana: uma mulher medíocre, fria, sem compaixão, sem um pingo de criatividade.

Intuitivo como nenhum outro, Piano ficou estarrecido quando percebeu que a Dra. era mais fria e insensível do que ele mesmo.

— Nossa, como pode existir alguém mais indiferente e patologicamente mais sem um pingo de compaixão do que eu? Isso não é gente, isso não pode ser humano!

A fobia era tão doida que ela se quer gastava os honorários que recebia de Edy Piano: sem mesmo abrir o envelope, Tatiana queimava os quatrocentos reais todo final de mês, tal qual um exorcismo. É lógico que uma criatura tão infeliz e ressentida com a vida como esta não poderia saber o significado da palavra caridade. Ela preferia incinerar os seus medos do que ajudar um necessitado.

Não sabendo identificar o porquê deste medo devastador, Tatiana procurava tratar este caso clínico com todo respeito porque sabia que o seu sombrio paciente era um tipo altamente intuitivo: ele vasculhava como ninguém as indignidades humanas escondidas sob as aparências.

Três anos e meio de análise, e Piano sempre “passava o tempo” nas sessões falando amenidades e comendo as suas paçocas — de amendoim...

Neste espaço de tempo, aconteceu a coisa que Tatiana mais pediria a Deus, caso ela fosse pobre e filha-da-puta: seu paciente fantasma, o Piano, faltou exatamente no dia cinco, o dia do pagamento. Em todo este tempo, ele nunca tinha se atrasado ou faltado a uma sessão sequer.

A Dra. ficou esfuziante — mas por pouco tempo!

Quando ela se deu conta, percebeu que não tinha um tostão. E se existia algo que a deixava ansiosa, nervosa — além do Piano — era ficar sem um qualquer na bolsa.

Mas se existia algo que ela tinha mais medo na vida do que o próprio Piano, esta coisa era um caixa eletrônico, destes que a gente vai e pega um dinheiro — quanto tem a sorte de ter! Ora, sorte, ela tinha. Dinheiro? Muito mais! A única coisa que Tatiana realmente não tinha era a coragem de entrar num caixa eletrônico para sacar dinheiro. O pior de tudo é que a Dra. tinha ficado tão feliz com a ausência do seu paciente que resolveu dispensar mais cedo a sua escrava, a secretária Bete, de modo que esta pudesse aprovei-tar melhor o seu final de semana, cruzando com pobres e negros de um modo geral.

Como uma pessoa que gostava tanto de dinheiro poderia ter tamanho medo de um simples caixa eletrônico? Essa fobia nem mesmo Freud explicaria.

O dinheiro era a única coisa com a qual a Dra. Tatiana realmente se relacionava. Pacientes, secretária, pobres, mulheres e putas não passavam de simples escória. Pela primeira vez, então, Tatiana lamentou a falta do Piano.

— Porra, aquele filho-da-puta só paga em dinheiro. Exatamente hoje que eu não tenho nada, ele me falta à sessão depois de todo esse tempo. É muita sacanagem!

Tatiana começou a perceber que não teria outra saída: deveria enfrentar os seus fantasmas e entrar num caixa eletrônico, caso quisesse ter algum dinheiro na carteira, para se sentir, então, mais gente.

Por quê tanto medo? Não sei, mas era uma fobia praticamente psicogenética.

Ela foi, portanto, em direção ao tal caixa eletrônico, sem saber que estava selando o seu destino para sempre. Pela primeira vez em toda a sua sórdida e avarenta existência, a doutora se encaminhava para o seu verdadeiro propósito.

Qualquer lugar onde houvesse um caixa eletrônico, seria uma região inóspita para Tatiana. Mas o lugar onde ela foi era perfeitamente normal: a cabeça dela é que ainda não estava sob o regime da sanidade.

Respirando bem fundo por todos os poros, ela se dirigiu ao caixa eletrônico próximo ao seu consultório. Já era noite, coisa aí em torno de 20:45. A Dra. Estava impecável e, como sempre, deslumbrante, uma delícia. Pra seu espanto, ao chegar no shopping, ela percebeu que não havia uma viva alma, o que a deixou ainda mais nervosa.

— Calma, eu preciso ter calma e dinheiro! Dinheiro para ter calma e calma para ter o dinheiro.

A mulher estava transtornada ante a possibilidade de visitar — a contragosto — os próprios medos.

Tatiana finalmente entrou no caixa, fechou a porta e rezou para o Tio Patinhas. Ela olhou a sua volta e...tudo transcorria na maior calma. Mas a calma era tanta, que a infeliz tinha esquecido a senha. Duas tentativas erradas foram feitas: ela só teria mais uma tentativa.

— Bingo! Entrou!

A alegria retornou ao seu semblante, mas esse momento de felicidade seria passageiro.

A doutora digitou um saque de R$ 400,00. Ela estranhou o fato da máquina emitir uma cédula de cada vez. Veio, então, uma nota de cem, uma segunda de cem, uma terceira de cem e o restante em cédulas dez. Extraordinariamente a máquina começou a tossir igualzinho ao seu temido paciente, o Edy Piano. A mulher ficou multicolorida de medo! Parecia uma arara num filme de terror.

Isso era só o começo.

Quando a máquina parou com seu pigarro digital, Tatiana tentou fugir, mas era tarde: a porta se trancou, a cabine escureceu e tudo ficou mais claro para quem compreende as vielas do destino:

— Meu Deus!

Como pode um espírito desgraçado e ateu como este pronunciar o nome de Deus em vão? Dizem que todos são filhos de Deus. Não é possível que esta filha-da-puta tam-bém o fosse. Seria muita sacanagem ter uma escrota desta como irmã, não acha?

Pois bem, a máquina parou de tossir, mas em seguida, tal qual uma ejaculação, o caixa começou a expelir sêmen misturado com notas de dez reais. Tatiana ficou toda coberta com essa mistura. Ela sequer conseguia gritar porque o pânico a sufocou. Lentamente a máquina foi parando de ejacular aquela mistura que banhou a psicanalista, até que finalmente parou.

Mas isso tudo foi apenas um prelúdio.

Um feixe de luz amarela sugou a Dra. Tatiana para o interior do monitor do caixa eletrônico, onde ela foi virtualmente violentada por cédulas e moedas. Políticos, escritores, cientistas, até o Pedro Álvares Cabral e o Mico-Leão mandaram ver na Dra, que depois de passar na mão de muita gente ilustre foi devolvida ao nosso mundo com todas as alterações necessárias à realização do seu mais genuíno destino.

Assim como o sêmen e as notas de dez reais que foram expelidas ejaculatoriamente pela boca do caixa eletrônico, a Dra. Tatiana foi repelida do mundo digital e de toda aquela sevícia sexual-financeira sob a forma de um extrato bancário que ao cair no chão se queimou, virou cinzas, para em seguida se transformar novamente na mesma Dra. Tatia-na.

A mesma? Acho difícil!

Na cabeça de Tatiana, esta interminável experiência salvadora teria durado pelo menos uma hora, certo? Antes de se queimar, o extrato bancário marcava 20:45:50.

No dia seguinte, após ser encontrada totalmente desarrumada, suja e descabelada, Tatiana foi levada para um pronto-socorro em profundo estado de choque. Feito o exame de corpo delito, alguns fatos estarreceram os médicos. Foram encontrados muitos extratos e saldos bancários juntamente com moedas e cédulas de real no interior de sua vagina. No entanto, o seu cu tinha tanto dinheiro enfiado que mais parecia um cofre de banco.

Um outro detalhe espantou os médicos ao ponto deles pensarem que ela tenha sido brutalmente torturada, além de estuprada. Tatiana trazia duas marcas feitas a ferro e fogo: na parte interior do seu antebraço esquerdo, o número de sua conta bancária e no braço direito simplesmente...R$ 400,00!

Mais um detalhe: Dra. Tatiana, 35, era virgem.

Os meses se passaram, o consultório foi fechado, no entanto, não houve a necessidade de maiores esclarecimentos psicanalíticos para levantar esta mulher e recolocá-la na rotina do dia-a-dia.

Mais alguns meses se passaram e Tatiana já estava absolutamente recuperada da traumática, mas salvadora situação.

Pela primeira vez em toda sua vida ela estava se relacionando de verdade. Tatiana tinha abandonado a sua gloriosa carreira de psicanalista para se entregar, de corpo e alma, a vida de prostituta no mais baixo meretrício da cidade.

Como puta, Tatiana passou a ser a alegria de todos os tabaréus, paraíbas, negros, porteiros e faxineiros. Ela tinha se transmutado na sopa dos pobres. No entanto, não eram os seus lindos olhos verdes e seus pequenos e deliciosos seios que a tornavam uma puta especial: seu corpo era pão; um raro alimento que os famintos nunca tinham provado por tão pouco em toda uma existência cercada unicamente de miséria e privação. Não era liquidação! O corpo de Tatiana era unção e seu amor..., conversão.

Sim! Ela sabia amar um homem como nenhuma outra mulher. Isso não era profissão. Era dom.

Ela cobrava, sim, mas desta vez oferecia algo de muito valor em troca.

Com profunda entrega e compreensão religiosa, ela tinha se tornado uma devota de “ciganinha”, uma espécie de pombajira a qual Tatiana sempre tinha o cuidado de agradar com cigarros dados por seus homens e muita bebida ordinária. Mas se tinha uma coisa que “Tatiana ciganinha” gostava, essa coisa era uma boa sidra. No entanto, pra prestar, esta sidra deveria ser da mais barata e vagabunda.

Quinze anos de ostentação, luxo e muita atividade rapineira na psicanálise não se comparavam a riqueza que agora cercava Tatiana ciganinha. Perfumes vagabundos, bijuterias de esquina e roupas simples de uma puta pobre não conseguiam esconder a beleza e a felicidade que bulinava sua vida de ponta a ponta.

Mesmo nas segundas-feiras, dia da semana no qual ela nunca trabalhava, pois tinha que servir ao santo no “terreiro do caboclo Ferreirinha do lote 5”, Tatiana estava tranquila, feliz da vida, na porta do bagulhão, comendo pipoca, paçoca ou amendoim.

Ela não via a hora do dia passar para voltar a ser feliz com seus homens, de terça a domingo. Tudo com hora marcada.

Parte VII - Conclusão - Acordando no sonho urbano

unTroglodita


Não consigo me mexer, falar ou esboçar qualquer reação, embora esteja absolutamente calmo e consciente de tudo a minha volta. É como se tivesse feito uma viagem para um lugar longe de tudo. Distante de mim e mais ainda da lógica. Quando consegui abrir os olhos, vi uma turba de curiosos se acotove-lando em torno de mim, na frente do Mc Donald.

— Que horas são? Que dia é hoje? Quantos anos se passaram?
— É meu caro, esta viagem foi a mais longa e perigosa que você já fez até hoje, sabia?

Além de não etender o porquê de toda aquela gente em torno de mim, eu também não conseguia precisar — e principalmente entender! — quem era aquele interlocutor mental.

Fui então colocado numa maca e levado no meio da população estupefata. Enquanto eu era carregado no meio de todo aquele tumulto como se fosse uma procissão, meu rosto foi atraído para um conjunto de pessoas que somen-te eu conseguia ver: eram eles, todos os personagens de todas as histórias que vi durante os meus momentos de inconsciência. O grupo inteiro me saudava, acenando as mãos, enquanto outros faziam gestos de incentivo e força. Todos — sem exceção! — estampavam um sorriso de vitória, como se fosse um reencontro de velhos amigos que tinham sido separado por causa de uma grande guerra.

Ao ver aquela fraternal recepção dos meus “amigos personagens”, um tipo de compreensão começou a brotar dentro de mim e meu rosto inundou-se de lágrimas. Eu chorava pela primeira vez em toda minha vida porque não sabia se voltaria a ver os meus aliados, que continuavam a me saudar com sorrisos e sacos de amendoim que eles comiam e jogavam sobre mim como se fosse um rito da saudação matrimonial.

Foi quando um velho padre de cabeça branca, vestindo um ábito preto surgiu no meio de toda aquela multidão louca. Ele fez o sinal da cruz sobre a minha testa e disse...

— Amém.

Em seguida, com um terço na mão, o padre mastigou um amendoim e todos sumiram, tanto os personagens como o próprio padre.

— Então é isso — pensei admirado com o que tinha entendido...

Bem, o tempo passou e muitas coisas mudaram radicalmente em minha vida desde aquele evento cismático no Centro da cidade. Minha mulher, a Carla, me deixou e muitos amigos também me abandoram — graças a Deus!

Embora eu não tenha passado o révellion do ano 2000 em Mangaratiba, eu sou profundamente apaixonado por toda aquela região e por tudo o que ela repre-senta para a reorientação do meu destino.

Sabe o que eu fiz? Abandonei a informática e me tornei médico, me dedicando integralmente ao estudo da medicina chinêsa e japonesa, onde pesquiso acu-puntura, fito-terapia, ioga, do-in e muitas outras técnicas integradas de cura holística.

Quanto a Deus..., eu não tenho e nem nunca terei um! O que simplesmente possuo são amigos. Ciganinhas, orixás e santos são algumas destas imprescindíveis amizades que sempre me acompanharam e sempre estarão ao meu lado. Em verdade, nunca terei deuses e muito menos religião. O que tenho são amigos-personagens. Só isso.

Atualmente, já no ano 2000, tenho um casal de filhos e sou casado com a mais linda mulher de lábios claros, seios pequenos, pele branca e olhos azuis que existe em todo o mundo.

Bem, vamos ficar por aqui. Sem Deus, adeus, ou até logo.

Simplesmente...Amén Do-in.

quinta-feira, 30 de julho de 2009


Doutor

UnTroglodita

(para Paulo Duboc in memoriam)

...Dia daqueles no Rio de Janeiro.

Dezembro, logo após o almoço, imagine só o sufoco no Fórum de Justiça, numa audiência de criminal, sem ar condicionado, o inferno que não estava?

Nestas condições, lá estava o Doutor, famosa não somente pela competência e indetratável honestidade, mas, também, pela beleza carioca. Separada, 45, mãe de duas lindas filhas, o Doutor hipinotizava a todos com sua carismática beleza: pela branca, seios bem pequenos, mas de uma simplicidade que chegava a irritar as rivais, pois ela abafava qualquer outra mulher, vestindo apenas um jeans, com uma simples cami-seta.

Não era digna de inveja?

Transeuntes, seguranças do Fórum, colegas de profissão e até os réus desejavam e respeitavam-na, já que ela tratava a todos com o mesmo carinho e respeito.

Mas sendo bem dona de si, ela tinha plena consciência de suas limitações.

Em quase 20 anos de dedicação à Justiça, o Doutor nunca tinha cometido um deslize sequer. Pontual no trabalho e inflexível em suas decisões, pois tinha certeza sobre seus veredictos, ela tinha um encanto inexplicável, praticamente hipnótico, pelo Sol.

Quando o trabalho permitia, o Doutor nem pensava: colocava um biquini — pois podia! —, uma canga, óculos escuros e...praia.

Aos 45, acreditem, ela ainda parava o trânsito!

No entanto, mesmo sendo apaixonada pelo Sol, ela nunca sobrepos o seu prazer, aos deveres junto à Justiça.
Mas um dia...

...Fórum, Vara de Trabalho, dezembro, calor e Sol demoníacos. Como se fosse pouco, ainda faltou luz; portanto, o ar condicionado, já era, tornando o ambiente um inomiável inferno.

— Deus do céu, meu negóico é criminal. Eu nem deveria estar por aqui, cacete!

Com visão analítica, o Doutor olhou o suadouro a sua volta, e tomou uma decisão inédita em todos esse anos e décadas de dedicação ao judiciário: mandou tudo às favas, e foi para a praia. Afinal, eram três da tarde, final de ano, horário de verão.

O somatório de tudo isso, só poderia indicar um único resultado: praia, praia e o seu fascinante Sol.

— Deus que me perdoe! Mas é uma vez na vida, e outra na morte.

O Doutor estava certo. Este seria o seu deradeiro veredicto. Sem saber, no meio daquela loucura no tribunal, a sua própria sentença já havia sido julgada e proferida.

Desculpas dadas, caô armado, o apolíneo deus guardava o seu destino.

Trânsito livre, mas com o Sol de rachar, o Doutor chegou rapidinho à primeira etapa do seu destino: a sua casa na zona sul, de onde rapidamente rumou, linda e gostosa, para Ipanema.

— Que Sol mais cáustico!

Reclamava, com estranheza, o Doutor que provavelmente teria sido camelo em sua última encarnação, pois a influência solar que a muitos abatia, no caso dela se transformava numa fonte de recarga e revitalização.

— Nossa, hoje tá demais — queixava-se o Doutor.

O relógio ainda estava longe de marcar 17:30, mas ela tinha a real sensação de que o Sol aumentava a sua intensidade, à medida que o tempo passava. Quando o relógio da praia, na esquina da Vinícius, marcou 17 horas, o clima tornou-se tão inclemente para a juíza foragida, que ela não teve outra alternativa: voltou para casa.

Todavia, ao retornar, ela foi invadida por uma paradoxal sensação de cansaço extremo e beatífica alegria, que tudo suportava. Um calor infernal, cobria toda a superfície do seu corpo. Todavia, um frescor angelical e divino, ventilava seu interior, fazendo-a se sentir um vulcão em lava, com um núcleo de gelo seco.

Quando chegou em casa, logo após estacionar o seu carro na garagem, Dionizu, o zelador paraibano da tarde, a única pessoa deste mundo a chamar o Doutor de doutora, disse:

— Eitcha! Doutora voltou perfumada, tá parecendo uma santa que veio do mar.

Ela fitou o Dionizu, e apenas respondeu com os olhos, o quais transbordavam um amor e um magnetismo que não eram deste mundo. Ao sentir todo aquele fluxo de amor escorrendo pelos olhos dela, o zelador perguntou, ainda sem muito compreender:

— O que foi doutora? Namorado novo, ou julgamento bom no trabalho?

Diafanamente, com doçura e feminilidade, respondeu:

— Os dois!

E assim, desse modo, o doutor foi caminhando, flutuando divinamente, até o seu apartamento, onde...

O Doutor entrou em casa, tomou o seu banho e não se secou, apenas colocou o seu robe branco. Com o corpo molhado e os cabelos húmidos, o vulcão de gelo se deitou, fechou os olhos e...sorriu.

Três dias se passaram, e um fortíssimo e abrangente perfume se espalhou pela casa, bem como por todo o 9º andar. Foi quando Dionizu estranhou o indecifrável perfume, mas sabia que vinha do apartamento de sua estimada doutora.

Como ninguém respondia, depois de tocar por minutos a fio a campanhia, os bombeiros foram chamados para entrar na casa. Logo que abriram, Dionizu entrou, seguindo de cara a secreta fragrância.

Sua busca terminou!

O rastro levou Dionizu, sem maiores problemas, até o sofá da sala, onde estava deitado o Doutor, que mesmo passado os três dias, ainda estava com o corpo integralmente molhado e os cabelos húmidos, escorridos e sensualmente despenteados.

Embora seu corpo não abrigasse vida, algo insólito e desconhecido permanecia ali. Era uma coisa tão divinal que tinha se apossado daquele corpo, que Dionizu sequer ficou triste, ou chorou.

Sem entender o que estava acontecendo com o beato corpo, Dionizu olhou, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e orou, como se estivesse na frente de um altar sagrado.

A mensagem foi clara para todos que estavam ali, perfumando-se: “O Doutor tinha sido julgado”.

Inocente, ou culpado?

Absolvido, ou condenado?

Nunca saberemos!

Um aparente veredicto, já tinha sido lavrado.

Estranhamente, seu semblante manteve-se feliz e seu corpo sempre húmido e brilhante, exalava um forte perfume de filtro solar, que em momento algum, inclusive em todo o seu velório, deixou de cercá-la, como se fosse uma áura.

Acreditem! O mais insólito, ainda está por vir...

Seu velório foi atípico porque levou uma enormidade de pessoas como há muito não se via num cemitério. Não pela quantidade, embora fossem milhares, mas era mesmo pela diversidade dos condolentes que foram prestar as últimas homenagens ao Doutor.

Ah, esqueci de contar: antes de ser insólito, o velório chegou a ser cômico.

Lá estavam políticos de todos os partidos, juízes e desembargadores de todas as instâncias, policiais civis e militares, advogados a dar com rodo, bandidos e a mais relevante nata do crime organizado, todos juntos, lado a lado, para prestar as últimas homenagens ao mais ferrenho e ético juiz já visto nos tribunais.

Embora pareça piada, mas é verdade. Neste velório, podiam ser vistos detentos que deveriam estar — normalmente — em suas celas de segurança máxima. Mas não! Todos deram um jeitinho, e foram ao velório. Até os presos da mais alta periculosidade, exemplarmente condenados pela espada e a balança do Doutor, compareceram, transformando o velória nun ato público de homenagem e, também, de confraternização entre o Estado de Direito e o Poder do Crime Organizado ou Estado Paralelo.

A matéria corrupta e seu agente corrosívo, abraçaram, riram e apertaram as mãos dos imaculados, que riam e se fartavam naquele velório histórico, onde foi servido tudo de bom e do melhor. Enquanto muitos comiam, bebiam, outros negociavam, vendiam e planejavam, um contra o outro, a despeito do clima de solidariedade — aparente, ou não.

Era quase meio-dia, e o velória já tinha se transformado numa grande festa. Rolava funk, pagode, axé, só musicão, só batidão.

De repente, o que ninguém esperava. O dia lindo, ensolarado, foi rapidamente interrompido por um eclipse total do Sol. Tudo ficou em trevas. O perfume sumiu. E todos, sem exceção, foram tomados de espanto e medo. Uma clima de insegurança tinha tomado conta do velório.

Foi quando um dos coveiros disse bem alto, e com toda tranquilidade, para todos escutarem:

— Olha, a festa tá vera, eu mermo tô amarradão, ma vamu dá um descanço real pá madami, pois até o padre se mandô cum medo, tá ligado?

Alguém tinha que botar ordem naquele paradoxo, não acha?

Todos silenciaram e seguiram as instruções do coveiro, que em meio as trevas cemiteriais, iniciou a romaria rumo a última morada.

Como tudo neste velório foi um verdadeiro carnaval de interrogações, o mesmo eclipse terminou num passe de mágica, durando menos de um minuto. No entanto, o Sol voltou tão agressivo e abrassador que nenhum dos presentes ousou acompanhar o enterro, em meio aquele Sol devastador. Nem mesmo os familiares conseguiram acompanhar o féretro onde jazia o Doutor.

Sobrou mesmo para os coveiros, pois pobre não manda mesmo, então...só restava aos dois obedecerem, relaxar e aproveitar o calorzinho, concorda?

Logo que os dois seguiram para a cova, onde ela seria colocada, o indescritível perfume voltou a ser exalado do corpo do Doutor, povoando todo o ambiente como uma benção, deixando todos alegres e calmos, que imediatamente deram continuidade a grande festa-velório.

Ao longe, todos olhavam, procurando uma sombra, pois o Sol, tava de rachar.

Quando os dois, quer dizer, os três, chegaram a cova, o mesmo coveiro disse:

— Aí, meu camarada, ninguém mandô um lero pá iscrevê na pedra da mulher?
— Pô, sacanagem — respondeu o seu parceiro. A gente vê que a mulher é bonita, cheirosa, né, negão?
— Na real? Issu divia toma banho i si perfuma todo dia. Aí vamu iscrivê alguma coisa pá falicida, vamu?

Enquanto um tirou o papel do bolso, o outro sacou de uma caneta. Sob aquele Sol que derreteria qualquer beduíno, ou mesmo um camelo sem maiores problemas, eles escreveram:

“...Nu meiu deçi cheiru gostozu, nesti utimu momemtu, somemti nois treis, e essti Sol des-graçado”.

Quando o coveiro terminou de escrever o epitáfio, um raio de Sol amarelo ouro, caiu do céu, pefurou o caixão, fazendo o Doutor sair dele em forma de uma poeira indigo metálica, que elevou-se pelo ar, em forma espiralada, espalhando-se por todo o céu, até sumir. Em seguida, uma fina chuva com cheiro de filtro solar, precipitou-se sobre tudo e todos.

Reviravolta e terror, tomou conta da multidão. Gritos, choro, tiros e uma insandecida correria esvaziou o cemitério em pouco tempo.

Somente os dois coveiros ficaram olhando, na maior calma, esperando a confussão passar.

Quando tudo voltou a normalidade, o coveiro disse para o seu parceiro:

— Enterro bom, hein? Vamu toma uma cerveja pá livia? Tá um calô.

quarta-feira, 29 de julho de 2009


Língua Negra

unTroglodita

“...Dizem, lá para os lados da Índia, que quando um sábio está pronto para se transformar num santo, ele ainda deve satisfazer o seu último desejo, antes de se tornar um com Deus. Somente assim, ele poderá atingir a iluminação e seguir o seu caminho, sempre online com o Criador...”

Lúcio Eumito, 84, designer, casado, dois filhos, teve a sorte de nascer no mais belo lugar já criado pelo Pai do Nazareno: a cidade do Rio de Janeiro.

A despeito da bela diversidade de sua cidade — serras, subúrbio, interior, rios e matas —, Lúcio era totalmente apaixonado pelo litoral da zona sul, lugar onde foi criado desde a infância. Lá, nas praias que vão do Leme ao pontal do Leblon, este carioca aprendeu a pescar e a contemplar o mais belo pôr-do-sol que existe na Terra: aquele que é visto da pedra do Arpoador, a partir da primavera, de setembro a fevereiro.

Portanto, não era nem um pouco difícil você encontrar Lúcio neste canto encantado de Ipanema, ora pescando, mas sempre contemplando e meditando.

Em seus devaneios e pescarias no cair da tarde, Lúcio sentia falta do passado, além de uma enorme saudade do amanhã. Mas falta do quê? De um Rio e de uma beleza que não mais existiam; que apenas persistiam em sua memória e em seu coração. Nestes momentos, ele recordava-se, quase como um obsessão, da época em que o seu pai largava sua mão infantil e o deixava correr pelas ruas de Ipanema, todas cobertas com folhas carmim, caídas das amendoeiras. Estas lembranças de outono-inverno, e muitas outras, emergiam constantemente durante suas pescarias. Sabiás, bem-te-vis, lacerdinhas (que seu pai tanto tirava de seus olhos), águas limpas, segurança, eram memórias de um tempo em que o Rio e toda zona sul tinham não só beleza, mas também encanto.

Mas um dia..., tudo isso chegou a um ponto máximo! A tensão era demais. Para relaxar de toda esta sufocante lembrança, Lúcio foi dar um mergulho no Arpoador, quando aconteceu algo que ele não via há no mínimo uns sessenta anos. Durante o mergulho, Lúcio foi coberto por um cardume de galhudos que saltaram do mar, como que voando, as centenas. Durante sua infância, Lúcio tinha aprendido que este era o sinal de que o dia seria de ótima pescaria. Mas a realidade é que nos tempos de hoje, ele fica com a bunda dormente de tanto esperar sentado na pedra algo bom no anzol.

Lúcio revoltou-se! Decidiu que só sairia da pedra do Arpoador quando Deus se apresentasse e conversasse sobre tudo aquilo, pois não se conformava com a extinção de tanta beleza.

A noite ainda não tinha chegado, e nada de Deus aparecer. Mas Lúcio não tinha pressa. No entanto, após horas a fio olhando para o lugar onde o Sol se põe, Lúcio disse, quase desistin-do, mas com muita sinceridade:

— Deus, eu não tenho mais ambição na vida! Tenho e consegui tudo o que quis. Acho que a minha única vontade ou desejo é saber de sua própria boca o porquê deste abandono. Você fez o mais difícil, criou o Rio, mas parece não saber o que está acontecendo com ele.

Foi neste momento mágico, de quase desistência, que Lúcio ouviu, bem alto, o canto de uma maritaca que foi se aproximando, aproximando, até que pousou em seu ombro direito e disse:

— Vamos conversar? Você ficou me olhando durante horas, me viu voando sobre as águas de Ipanema e ficaria ai, sentado em cima de mim, até que eu aparecesse, não?

Tudo bem! Faz tanto tempo, mesmo...

Lúcio achou estranho. É como se Deus não se lembrasse de algo.

— Senhor, quem sou eu pra reclamar da vida, mas gostaria que você simplesmente ficasse aqui comigo, vendo o pôr-do-sol, até ele sumir, só isso.

Deus concordou, e os dois ficaram em silêncio olhando o Sol se pondo, de cima da pedra do Arpoador. Era novembro, o dia estava claro e tão lindo que tornou aquele poente multicolorido.

Os minutos se passavam, o Sol ia se aproximando do horizonte e os dois continuavam em profundo silêncio, fazendo daquele ocaso, um caso insólito.

Somente quando a noite misturou-se com o finalzinho do dia, já sem a presença do Sol na linha do horizonte, que o silêncio foi rompido por Deus que disse, para o espanto de Lúcio:

“E a coisa mais linda que eu já vi passar!”
— Como?
— Sim, eu sinto e compreendo suas queixas e saudades, mas “o Rio de Janeiro continua lindo”, sabe? Por que o espanto? Esqueceu que criei o mundo e o Rio através da Palavra, o Verbo? Tudo isso é som, é música das esferas; eu adoro música, Lúcio.

Lúcio ficou feliz com a resposta, e preferiu manter o silêncio. Foi quando a sagrada maritaca se metamorfoseou num lindo Oxalá, do qual Lúcio sempre foi devoto. O orixá, então, tocou o peito de Lúcio com a mão direita, dizendo:

— Agora, sois santo no Rio: o santuário que nunca esqueci.

E Deus se foi, transformando-se em maritaca, virando sabiá, que tornou-se bem-te-vi, voando alto, tão alto que pode ver, depois de tanto tempo, sua obra prima: parte do litoral carioca, do Leme até Guaratiba. Viu, também, lagoas, matas e, para sua maior alegria, seu Filho de braços abertos no Corcovado, cheio de luz.

E o Deus alado disse:

— Meu Deus, é demais!

O bem-te-vi sagrado, igualzinho a Lúcio, agora Santo Eumito, sentiu saudade de toda aquela beleza, e não teve como: se transformou num papa-terra e começou a cair de toda aquela altura. Foi caindo, caindo, até que bateu um sudoeste...e fez com que o Deus papa-terra caísse no mar de Copacabana, em frente a uma língua negra. Que azar! Deus sentiu nas escamas a podridão que tinha maculado a sua criação. Metais pesados, coliforme fecais, falta de educação, negligência governamental, o peixe divino se sentiu sufocado, mas deu um jeito de ir para águas limpas. Então, quase sem vida, Deus nadou para as pedras do Arpoador, onde o seu devoto e amante do Rio pescava.

É. Isso mesmo! Santo Eumito — que ironia — acabou fisgando aquele papa-terra divino. Mas se Deus foi pro anzol, o nosso santo designer estava prestes a ir para a cruz.

Já era noite, e Eumito encontrava-se em estado de êxtase após o seu diálogo com Deus. Ele estava tão inebriado de alegria, que após fisgar o peixe resolveu reviver um antigo hábito herdado de seu pai. Ele pegou o papa-terra, retirou as escamas, limpando-o totalmente, para em seguida colocá-lo num pequeno braseiro elétrico. Após alguns minutos, Eumito começou a comer, aos pedaços, o seu peixe, o único daquela noite. Tiro e queda: algum tempo depois, Eumito estava morto e com a sua língua totalmente escura, negra. No entanto, antes que seu corpo fosse encontrado sobre as pedras, a maré subiu a um ponto tal que o mar tocou os seus santos pés. Como numa passagem bíblica, deste dia em diante o mar de toda esta região tor-nou-se limpo e cristalino.

Este duplo sacrifício só ficou registrado mesmo nos anais do anonimato, já que as manchetes dos jornais apenas repetiam o que o governador de então, o fervoroso e inescrupuloso fundamentalista não cansava de falar em suas coletivas:

“...acreditem, minha avó já dizia, se morreu com a língua negra..., certamente era porque sua alma nadava nas águas do desamor e do pecado. Santo ele não deveria ser”.

Que língua, hem?