domingo, 5 de dezembro de 2010


Heisenberg
por

unTroglodita

A história, não vou contar. Começa pelo fim — sem princípio — e nunca termina, no entanto sempre acaba! Celus criou o infinito, incertezas e respostas sem precisão, onde a única certeza é a indeterminação. Louco jogador!


P.S.: Fiz micromodificações neste novo conto, mas mantenho a essência do que foi enviado para o Concurso de Microcontos da ABL — Academia Brasileira de Letras em 2010, sendo um dos 2.290 contos não classificado. Este microconto representa o meu primeiro flerte com a MQ — mecânica quântica e sua relação indissolúvel e intestina com a psicologia analítica. Em breve, publicarei um conto mais extenso a esse respeito.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010


Milagre do sêmen
por
unTroglodita


Dedicado a dois grandes amigos, minha mãe, D. Conceição e Tadeu Borges

Para os amigos Carlos Augusto
e
Ivonne de Genova Silva in memoriam


“Quanto maior for o predomínio da razão crítica, tanto mais nossa vida se empobrecerá; e quanto mais formos aptos a tornar consciente o que é mito, tanto maior será a quantidade de vida que integraremos. A superestima da razão tem algo em comum com com o poder de estado absoluto: sob seu domínio, o indivíduo perece”
(C.G.Jung)


Primeira Narrativa

“...Eu não vim do futuro: estou, estamos nele, por isso falo no seu presente! Voltei apenas para contar o que se passou numa época muito afrente, bem distante da sua. A aparente incongruência espaço temporal do relato deste amanhã, têm raízes no seu tempo. Não duvide: O teu passado não poderia estar mais identificado e conjugado com um tempo que não fosse o meu futuro. Somos irmãos desde épocas imemoriais! Quero falar sobre as origens da salvação: as ‘sementes’...”

Parte I — Oríginem, motívus

Eu ainda não tinha nascido, pois apareci neste mundo poucos períodos após os eventos que citarei a seguir. Sou um fruto deste importante estágio transitório, onde muitos já afirmavam ser uma eclosão civilizatória única em todos os tempos.

Não sabiam eles que uma fase de abominável barbárie jamais vista, estava sendo orquestrada — sob o manto de um antigo e muito bem organizado grupo de seletos agentes do mal.
Na época desta narrativa, distante ainda séculos do tempo de vocês — mas nem tanto...—, um novo padrão religioso tomou vulto sobre a Terra, conquistando milhões de ardentes e devotados corações humanos, num curtíssimo período de tempo.

Não era apenas um culto, e muito menos uma religião fossilizada em ritos que mecanizava seus seguidores em repetidores sem fé. Não! Era, acima de tudo, um ato que transformava todos em sacerdotes de Deus. Não poderia dizer que eram vulgos batistérios, pois estes não sagravam com gestos vazios, e não mais com água, como se fazia há milênios: eles agora ungiam com o fogo!

Diferentes da Cúpula Sacerdotal que se mantinha com uma casta pura, sem miscigenação alguma há inquebrantáveis séculos, através dos milênios, todos os homens e mulheres continuavam a viver suas existências sem restrições. Todavia, a única exigência — o compromisso espiritual — era a disseminação do saber e da sagração recebida em cerimônia secreta, sempre que necessário, pois não existia diferença alguma entre os poderes de bênçãos espirituais da humanidade iniciada e da Cúpula Sacerdotal.

Pois bem, o êxito e o alcance espiritual desta nova religião foi, como disse, rápido, e conquistou, igual uma cruzada bélica que em vez de territórios, conquistava almas. Isso já representava ¼ de toda a população do planeta. Isso mesmo!, eram bilhões de almas a serviço do bem. Logo, este poder emergente assustou muita gente mal intencionada, especialmente os que viviam, desde tempos imemoriais, sob o “manto negro de um antiquíssimo mal”.

Como forma de definitiva reconquista, um organizadíssimo movimento materialista, ateu e de raízes obscuras e cruéis foi colocado em atividade por estas mesmas hostes malignas, abrangendo, em todo o mundo, uma influência nefasta e corrupta no legislativo, na mídia, nas indústrias de alimentação, mas com um domínio chave e estratégico da agricultura e da política.


P.S.: A ideia deste conto, divido em três narrativas e sete partes, surgiu em 1999. Mas eu não conseguia levar a redação adiante, pois não tinha certeza a respeito do formato a ser seguido, bem como de toda a estrutura do texto. Portanto, por mais de 10 anos, eu fiquei tentando encontrar uma "solução". Somente no final de 2009, a partir de conversas com meu amigo Tadeu, entendi o que deveria fazer e qual o caminho a ser seguido. Ele voltou a ser escrito no Natal de 2009, sendo concluído agora, em novembro de 2010. Ele é o primeiro conto do "Livro de Emersão".
Parte II — Actiòni I: Pánem, vinum, mòrtem!

Estou pensando numa maneira de explicar e transmitir para você, esta religiosidade e rito disseminados pelos Filhos de Triculu. Não era um rito afro, eleusino, hebraico e muito menos católico cristão — pois é somente isso que vocês ainda conhecem, na melhor das hipóteses, das origens de sua presente fé.

A liturgia dos triculus se resumia a uma única celebração que envolvia dois elementos sagrados: o pão e o vinho. Entretanto, nada tinha a ver com o — agora extinto — rito sacrificial da eucaristia. Não!, pois a sagração única tricula infundia em seus iniciados, o batismo telúrico do Espírito Santo; logo, essas vidas acordavam dos seus túmulos existenciais, levantando-se como fiéis e purificados servidores do Deus trino.

Ao receber este sacramento, no qual realmente se experienciava, interiormente, o corpo e o sangue do Cristo, o devoto ressuscitava a “visão espiritual”, motivo este que levava-os a usarem os óculos trino, de lentes azuis índigo, onde uma delas se posicionava, harmonicamente, um pouco acima dos olhos, entre as sobrancelhas.

Este era, portanto, o único e mais importante símbolo de identificação externa deste destacado segmento da humanidade que já povoava e influenciava — construtivamente — todas as sociedades, de todas as nações do globo terrestre que lentamente era corroído, programadamente destruído pela ideologia materialista e ateia da escuridão absoluta.

Esta influência espiritual emergente começou a atrapalhar — e deter! — os planos imorais e satânicos dos membros e adoradores do Sol Negro: uma seita maldita, opositora dos Filhos de Triculu, cujo culto fundamentava-se numa determinada fase lunar, em eclipses solares e num ponto abstrato, altamente oculto, envolvendo planetas, constelações muito específicas e ciclos ocultos de expressão e emergência do mal entre os homens.

A diferença básica entre estes grupos é bem distinta.

Enquanto os triculus se preocupavam em conquistar os corações e almas humanas, para torná-los livres e senhores dos seus destinos; os seguidores deste antiquíssimo mal, executavam um plano sórdido para escravizar o gênero humano, através de uma falácia filosófica que unia muito bem três elementos inteligentemente explorados na sociedade mundial: mentira, ignorância e miséria; onde o ódio, a guerra e a morte, celebrariam a vitória do Sol Negro e de seus afiliados.

...E foi no meio deste conflito que nasci.
Actiòni II: Persecutiòn

Vou tentar explicar, agora, o que aconteceu no mundo que vivi, no entanto é extremamente complexo resumir, em poucas palavras, os fatos que praticamente aniquilaram com os Filhos de Triculu da face da Terra porque os esforços dos seguidores do Sol Negro foram tão efetivos que levaram a sociedade de então a seguir uma tirania una: O reinado do mal encarnado nos governos e suas nações.

O ecumenismo entre os homens e a glória de Deus na Terra, representados por ¼ da raça humana, foi substituído por um governo e uma política persecutória de origem demoníaca — planetária e extraplanetária.

O início do obscuro período de ostensiva perseguição transcontinental a todo e qualquer triculu começou na minha infância. Esta política hedionda foi elaborada no continente conhecido por vocês como América do Sul, e chamou-se plano “Vaga”.
Actiòni III: Segregàre

O plano político de extermínio dos triculus, o Vaga, foi tão exitoso nos seus objetivos que não tenho medo de afirmar: Tal crime contra a humanidade, jamais foi visto em toda a nossa história. Os judeus no cativeiro, no Antigo Egito; a perseguição aos cristãos, no Império Romano; a Inquisição, na Idade Média, o Holocausto na Segunda Grande Guerra; ou mesmo todas as mais repulsivas tiranias do século XX, nada disso pode se comparar a este plano de extermínio em massa.

De início, uma massiva contrapropaganda procurou detratar os triculus, colocando-os como uma seita de pervertidos e inimigos ocultos do gênero humano. A consequente destruição da imagem e de toda a reputação moral dos “Filhos” — como também eram conhecidos — foi estratégico para tudo o que se seguiu.

Assim como vocês, eles eram cidadãos normais, pois tinham família, trabalho e profissão e, portanto, pagavam impostos como todos.

Logo, como não poderia deixar de ser, a perseguição do Estado concentrou-se, de forma muito bem planejada, na educação e nos ambientes de trabalho. Foram, por sua vez, encurralados no seio de uma sociedade e de um mundo, cujo progresso se devia, também, ao trabalho e a participação dos triculus.

Discriminados, não tiveram outra alternativa que não fosse fugir, fugir de um continente para o outro. Só posso descrever esta entrópica fuga como um deslocamento populacional de proporções gigantescas.
Actiòni IV: Vítium

Absolutamente segregados, os triculus agora eram vistos como um grupo de pervertidos e bêbados que se deleitavam em infindáveis orgias. Como eles representavam a mais elevada forma de disciplina e retidão moral naquela sociedade, o “resto” da humanidade, os quase ¾ de coniventes e submissos pensaram: “Se eles que são eles, um bando de feiticeiros hipócritas, não dão a mínima para conduta, vamos nós, de agora em diante, seguir nossa própria vontade”.

Como se eles tivessem vontade...

Antes, sob a benéfica influência dos triculus, esta parte da humanidade era integralmente avessa a qualquer tipo de bebida alcoólica. Foi exatamente aí, então, que o plano Vaga começou a atuar malignamente sobre a sociedade, escravizando-a através da bebida. O domínio e a manipulação política dos adictos tornou-se política de Estado, como já antevia o plano.

Um golpe de mestre! O sórdido plano dos asseclas do Sol Negro, atingiu em cheio dois objetivos vitais em uma única ação: Desmoralizou publicamente os triculus e viciou uma enorme e expressiva parcela da humanidade, já que a manipulação social e política deste verdadeiro exército de dependentes era um elemento chave às etapas seguintes deste processo de dominação.

Farei uma curta — porém necessária — digressão para deixar bem claro o que estava acontecendo.

A nossa sociedade e toda sua economia não estava mais alicerçadas na busca e no consumo dos combustíveis fósseis como forma de geração de energia. Alcançamos um avanço e um domínio tecnológico tão prodigiosos que a nossa frota de transportes — públicos e particulares — utilizava, para sua locomoção, um conjunto de pastilhas fotovoltaicas portáteis, cuja fonte de extração não se limitava ao nosso Sol: esta tecnologia nos permitia captar e converter a energia solar, emitidas de qualquer estrela do universo, através de telescópios satélites que orbitam em torno da Terra.

Você pode imaginar o que é obter energia solar de uma estrela já extinta há milhares de anos, mas cujo brilho captado ainda é uma realidade palpável e utilizável? É isso o que fazem as nossas estações telescópicas de busca, captação e conversão solar que orbitam no espaço.

Conto isso para vocês, apenas para dizer que em nossa sociedade as antigas bombas de combustível, e seus respectivos postos, tornaram-se desnecessárias. Tudo muito antiquado e inoperante dentro da nossa realidade.

Pois bem, o êxito no processo de dominação e submissão das massas de alcoólatras fez com que os governos praticamente ressuscitassem os postos de gasolina, algo totalmente obsoleto, como já disse. Todavia, em vez de combustíveis, as bombas serviam, através da gratuidade do Vale Drinque, bebidas alcoólicas aos dependentes espalhados pelo mundo.

Toda uma logística que envolvia produção, distribuição e abastecimento, foi criada especialmente para atender esta gigantesca demanda de adictos. Embora fosse uma situação complexa de consumo, o investimento era necessário — e de acordo com a ótica do mal, valia a pena!
Agora…, o golpe final está cada vez mais próximo.

Crianças, adultos, idosos, todos faziam filas descomunais para receberem suas cotas quinzenais de bebida; melhor dizendo, de uma única bebida: a milenar cerveja.

Mas por que somente cerveja? Tudo tem uma razão de ser…

Tudo o que estava acontecendo, nada mais era do que um muito bem organizado subplano de obsessão e manipulação coletiva sem precedentes. Logo, para quem realmente dominava, este aparente caos era apenas uma fantasia que ocultava a ação sombria de uma organização criminosa com grande poder político espiritual.
Parte III — Stigma Uma das áreas de maior domínio dos seguidores do Sol Negro, se estabelecia na ciência da nanobiotecnologia, onde atuavam de uma maneira secreta, ao infiltrarem ali, no universo acadêmico, seus agentes cientistas e pesquisadores. Mas por que tanta maestria nesta área? Agricultura é a resposta! Sim, a supremacia política econômica na agricultura era fundamental, pois o plano caminhava rumo aos seus funestos — e ainda indeclináveis — objetivos. Nada era solto. Tudo tinha um sentido e um motivo vil por trás de toda e qualquer ação. Prímus Os desígnios do Sol Negro precisavam ir mais além. Não havia oposição, contestadores ou qualquer forma de reação e resistência contra as sucessivas investidas das sombras e seus agentes. Sentido que uma importante etapa tinha sido conquistada com a desmoralização dos triculus e a “domesticação” da sociedade dependente e submissa, chegou o momento ideal de implantar o ciclo de “mais terror” que colocaria a família humana definitivamente em lados opostos. O sisma social, portanto, estava prestes a se concretizar no seio da humanidade — totalmente sem moralidade, ética ou aspirações nobres. Para tanto, implantou-se a seguinte determinação entre os povos: Todo o cidadão afeto ao regime e suas diretrizes que delatasse, ou mesmo entregasse um Filho às autoridades — à polícia política local —, receberia cotas extras do vale drinque em sua própria residência como recompensa ao serviço prestado ao Estado. As mentes doentias que planejaram tudo isso, entendiam esta fase como o início de uma natural e salutar desratização sócio espiritual do planeta. Consideravam o Vaga, também, uma suma e necessária ação sanitária. E assim se fez! Uma humanidade corrupta, então, deu livre curso às práticas perversas deste globaritarismo de inspiração satânica, onde todos, inclusive as crianças, delatavam as posições e as moradas dos triculus que não tinham mais para onde fugir ou ficar porque eram — cada vez mais e mais — perseguidos e injustamente caluniados.
Secundus

Vendo que a demanda mensal dos povos pela cerveja já era maior do que o próprio consumo por combustíveis fósseis no curso dos séculos XX e XXI, uma ordem unidade do poder globalitário colocou um freio — malicioso — neste consumo doentio, cujo objetivo, é claro, era apenas aprofundar o domínio e a consequente dependência das pessoas pelo álcool.

No presente estágio, a busca e apreensão de triculus era o que menos importava.

E foi precisamente neste período que entraram em cena as grandes mentes dos seguidores do Sol Negro. Os mais brilhantes cientistas do setor de nanobiotecnologia, colocaram — enfim — os seus dons a serviço do lado sombrio da humanidade.

Como estava previsto, um verdadeiro conclave de exímios cientistas criou, num laboratório de segurança máxima, um vírus jamais visto desde que este mundo é imundo. A atividade de uma complexa engenharia científica edificou um engenho que primava pelo ineditismo — no mínimo espantoso!

Ao ser manipulado em sua fase gestativa, este vírus teve implementado em sua cadeia genética, células sanguíneas do mais desprezível líder e mentor do plano Vaga que controlava toda esta sordidez mundial de um ponto situado — como já disse — na região conhecida por vocês como América do Sul.

Este organismo biogenético carregaria em sua genética mais sutil, portanto, as marcas e os desejos vis que animavam e habitavam a personalidade, “oculta”, deste líder criminoso e inimigo da raça humana.

Com auxílio de nano androides, o vírus estaria praticamente geminado com a mente inescrupulosa deste governante, tornando esta praga uma extensão natural de sua pérfida consciência. Portanto, os nano androides fariam simplesmente a interface que manipularia a ação desta criação do mal.

Não se enganem! Agora, o pacto com satã pode até ser ultrassofisticado, high-tech; todavia, sua finalidade continua fiel às suas raízes. O sangue é o mesmo; e os homens, também.

O outro elemento que constituía esta maldição era um reflexo do revanchismo e do rancor dos seguidores do Sol Negro em relação às religiões e aos guardiões da luz que sempre combateram — vitoriosamente — as investidas dos partidários das trevas através dos tempos.

Para isso, os tais cientistas utilizaram um dos mais importantes símbolos do nascimento espiritual, manipulando neste covil do demônio, uma antiquíssima e sagrada planta. Eles conseguiram extrair o “conteúdo memorial” deste vegetal em sua fase formativa; transmitindo, somente, o período vivencial — do pântano, no lodo, na lama — para este instrumento de destruição biotecnológico. Portanto, eles possuíam a chave científica para a captação genética dos “ritmos instintivos” em todos os reinos da natureza.

Este projeto de degeneração humana foi tão secretamente concebido que raros eram os sequazes das sombras que conheciam — na totalidade — os objetivos desta fase do plano Vaga.

Para resumir e não me estender muito, esta obra perniciosa foi batizada por seus pais como D1000-ST. Que ocultava o seguinte sentido: Domínio = mil anos, S = Senhor e T = Trevas.

O vírus Tulosvusir, como ficou publicamente conhecido, atuaria, em sua primeira etapa, destruindo — calculadamente! — as culturas de cevada e lúpulo. Não era intenção do regime acabar em definitivo com tais plantações, mas dar a impressão de que isso estava realmente acontecendo, apenas para gerar pânico e uma crise de abstinência coletiva forçada; proporcionando, com isso, um descontrole emocional e psíquico absolutamente útil ao plano de dominação e sujeição dos homens ao governo do Sol Negro.

Até hoje, ninguém sabe como este projeto de destruição foi disseminado pelo mundo, se pelo ar ou através das águas. Tudo não passava de especulação. A única certeza é que o Tulosvusir recebeu uma sagração negra, pois realizou-se um rito de magnetização que conferiu ainda mais poder destrutivo ao vírus. Numa data escolhida pelos sacerdotes do Sol Negro, num ciclo específico da Lua, em um dado signo da banda zodiacal, estabeleceu-se uma relação de sintonia com um ponto celestial sagrado que parece ter grande significação para esta irmandade das trevas, que foi fundada em nosso orbe, há milênios, em íntima relação com esta misteriosa e indizível constelação.
Tèrtius

E foi exatamente isso o que aconteceu!

Desta muito bem planejada abstinência forçada, uma onda mundial de histeria colocou as mentes das populações nos mais danosos estados patológicos, porque a abrupta queda do consumo mundial por cerveja, era diretamente proporcional ao programado desabastecimento da bebida nos postos distribuidores. Logo, as bombas que outrora vertiam — irrestritamente — esta gratuidade estatal, agora estavam secas, vazias, porém, assim como um antigo provérbio, cheias de más intenções.

Em razão da imprensa estar totalmente corrompida e submissa nas mãos dos mais importantes membros do Sol Negro, foi muito fácil dar continuidade a esta arquitetura de dominação. Uma muito bem montada estratégia de propaganda, informação e contrainformação, colocou, definitivamente, este exército de adictos contra toda a família triculu, agora absolutamente encurralada e num beco sem saída.

Em poucos dias, os meios de comunicação — especialmente a imprensa zumbi — aterrorizaram o mundo, divulgando notícias pavorosas de que as culturas de cevada e lúpulo estavam a um passo da extinção, por causa de uma rara e perigosíssima praga, ainda desconhecida.

Nos dias que se seguiram, mais notícias “plantadas” foram veiculadas, onde os governos conjuntos já afirmavam a suspensão dos vale drinques. Mas por outro lado, estes mesmos governos já incutiam nas mentes — facilmente moldável das massas — a possibilidade de que a praga que destruía lavouras era fruto de um abominável ataque terrorista biotecnológico, como já indicavam os serviços secretos de inteligência, através de suas agências integradas de todo o mundo.

Observem que o trabalho de manipulação e divulgação das informações torpes disseminava-se da forma mais premeditada possível, de modo que uma mentira deslavada se transmutasse numa verdade inabalável; melhor ainda, inquestionável junto a opinião pública, formada por uma turba de incontáveis dependentes alcoólicos.

Sedimentada esta irreversível verdade, a próxima etapa selaria o destino dos opositores do Sol Negro para sempre.

A divulgação de um relatório conclusivo, produzido pela USI — Unidade dos Serviços de Inteligência, recebeu uma cobertura midiática histórica: a sua leitura foi feita em cadeia mundial, ao vivo, através do mais importante líder do Sol Negro.

Sim!, o pai sanguíneo da praga biotecnológica, o mais popular político feiticeiro que existia, afirmou publicamente, a partir deste relatório fajuto, que um organismo geneticamente manipulado tinha sido criado pelos triculus, unicamente para desestabilizar a ordem democrática globalitária transnacional entre os povos. Mas o líder e mentor maior do plano Vaga, fez questão de destacar: a destruição dos filiados e sustentadores deste regime legítimo e democraticamente aceitos pelas nações da Terra era a mais importante meta dos pervertidos triculus.

Indignados e possuídos por uma revolta incomensurável — e útil —, esta manada de subsidiados deu livre curso ao mais desprezível sentimento de vingança. Incentivados pelo Estado e dominados psiquicamente pelo abjeto poder do Sol Negro, iniciou-se o mais sanguinário ciclo de extermínio de seres humanos, desde que o homem passou a habitar este planeta.

O Estado uno em todo o planeta, a expressão pública e acional das forças satânicas, passou a subsidiar a morte, ao trocar determinado números de corpos triculus, por cotas de cerveja. No entanto, cotas especiais eram dadas em troca dos cadáveres de crianças triculu. Foi abominável ver crianças sendo tratadas como carcaças e, em seguida, trocadas pelo vício.

Sob a ótica do plano Vaga, estas “sementes” malditas — as crianças — deveriam ser destruídas na mais tenra idade. “Este futuro não deve prosperar”, diziam os guias das sombras.

“Eles não contavam, entretanto, com o segredo que ocultava as 'sementes'. Eis o mistério da salvação...”

Todavia, o momento não era — ainda! — de revelação e redenção, mas de uma cruel e covarde destruição fratricida.

O subsídio da morte, o Vale Assassinar, a mais vil ação que os agentes das trevas conseguiram introduzir entre os homens foi um êxito que superou as expectativas. Entretanto, o plano Vaga, já prevendo tal situação, pois se antecipou em tudo, dispôs diretrizes claras para solucionar os inconvenientes gerado pelo sucesso desta etapa.

Os resultados satisfatórios no processo de extermínio indiscriminado e definitivo dos triculus em todo o mundo, proporcionou uma espécie de passivo acumulado indesejável para os mentores do plano: O acúmulo de cadáveres. Houve, por isso, a ocorrência de um complicado problema de ordem sanitária, no qual a saúde pública se via incapaz de resolver de uma forma eficaz.

A solução indicada pelo Vaga foi taxativa!

As lideranças mundiais não fizeram nada mais do que seguir a risca e disseminar o lema que nasceu dentro das lojas do Sol Negro:

“Para que serve o pão? Que utilidade nos têm o vinho, se a carne é abundante e o sangue é farto?”

Esta mensagem demoníaca — subliminar, também — deu partida para o cenário mais bestial nas relações humanas.

Isso mesmo! A parcela da humanidade que encontrava-se dominada — psiquicamente — pela ira das sombras, se consubstanciou às práticas repugnantes da necrofilia, seguida do canibalismo. Este infeliz contingente de animais, não tinha mais condições de perceber o abismo que separava o psicológico, do psicopatológico.

Porretes, facões e foices eram utilizados no abate dos triculus. Em seguida, independente de serem crianças ou adultos, a rês de cada uma das vítimas era disputada ferozmente, sendo totalmente dilacerada com as mãos e, também, às dentadas pelos cegos selvagens.

Esta epifania das trevas realizava-se em vias públicas ou onde houvesse triculus disponíveis à carnagem.

As pretensões do Sol Negra eram tão inescrupulosas, que a cerveja fornecida nesta fase já apresentava uma — planejada — adulteração de ordem químico genética, que objetivava o enfraquecimento gradual e crescente dos adictos, pois estes se tornariam, em breve, um inconveniente tão insolúvel quanto os cadáveres dos triculus que passaram a abundar pelas cidades do mundo.

A vulnerabilidade imunológica deixou a legião de genocidas expostos a todo o tipo de doenças, contágios e infecções oportunistas — que neste quadro de total insalubridade psíquica e sanitária imperava por todos os cantos da Terra.

O destino dos “zumbis úteis”, já estava lavrado, há tempos, pela tirania da escuridão, porque estes já tinham cumprido a sua macabra finalidade, deixando de ser necessários ao estado globalitário. Todos seriam descartados com a morte.

Inegavelmente, o planejamento, a previsibilidade e toda a execução do plano espantou a todos os homens de bem, em virtude da rapidez com que atingiu seus objetivos infames, eliminando, sem dó nem piedade, os seus principais inimigos, os Filhos, os herdeiros — conscientes! — de Deus na Terra.

Como a barbárie genocida caminhava em passadas largas rumo ao seu último ato, os mentores do vírus já enxergavam a possibilidade de pôr em prática, o mais rápido possível, o golpe fatal sobre os triculus. E isso seria feito sem maiores apreciações ou remorso, pois piedade e psicopatia jamais foram irmãos; e se um dia foram, o segundo assassinou o primeiro pelas costas, logo que pôde.

Do mesmo modo que o Tulosvusir aniquilou e contaminou as culturas de cevada e lúpulo; que por sua vez contaminaram e destruíram as legiões dos adictos, ele também seria um elemento estratégico na derrocada final dos Filhos, praticamente extintos da face da Terra.

Logo após a eliminação dos triculus, esta parcela nociva da humanidade deveria pagar o seu inadiável tributo ao senhor das trevas: todos eles contraíram uma doença incurável. Este mal não foi resultado somente do canibalismo e das práticas sexuais abomináveis da necrofilia. O Tulosvusir contribuiu para a instalação, em seus organismos, de um tipo de imunodeficiência nunca visto em toda a história da medicina; algo realmente nefasto. Portanto, o exército de zumbis do Sol Negro depauperou em vida, ao apresentar um quadro muito mais devastador que a própria lepra, pois todos que assassinaram os triculus apodreceram em vida, entrando num processo irreversível de decomposição de seus corpos, ainda vivos. Primeiro eles apodreciam, depois morriam. Ou seria o contrário?

Embora a destruição das tropas mercenárias espalhadas pelo mundo não tivesse chegado ao fim, os articuladores do Vaga não hesitaram, e colocaram em andamento o estágio final do plano; que atingiria, em cheio, a mais importante base de sustentação da religiosidade tricula, ainda intocável.

Só faltava isso!

Pelo fato deste vírus ser uma avançadíssima estrutura OGMP — Organismo Genético Manipulado Psiquicamente, ele sempre estaria em conexão com os ditames do político feiticeiro “Fanaspatic”: o líder do Sol Negro, cuja consciência estava — satanicamente — codificada com esta monstruosidade biotecnológica.

Ao criarem o Tulosvusir com seus nano robôs realizando o vínculo psíquico com seu mentor, os inescrupulosos cientistas terminaram criando, também, uma espécie de espírito da natureza artificial ou um deva de laboratório; um Frankenstein biogenético, submisso a vontade abjeta de uma personalidade rancorosa e sempre vingativa.

Animado pelo desejo e pela vontade do mefistofélico Fanaspatic, o vírus se dirigiu, agora, para todas as culturas de trigo e videira da Terra. Em seguida, uma virulenta praga se espalhou em todas as plantações que existiam, levando a agricultura mundial a ter sucessivas quebras de suas produções, até atingiram um estado de total imobilidade produtiva.

Não era apenas uma questão econômica de quebra de produtividade — que por si só já era grave. As sementes da videira e do trigo estavam morrendo em toda parte do mundo. O quadro devastador era irreversível.

Com este golpe de mestre, o completo extermínio do trigo e da videira, não haveria mais a possibilidade de propagação e crescimento da religião dos triculus entre os homens.

Em virtude da sagração única dos triculus — o batismo com o fogo — só ocorrer pela inseparável e secreta combinação que unia o pão e o vinho, o fim destas milenares culturas, significava um colapso absoluto, um caminho sem volta na inquebrantável, até então, tradição espiritual tricula.

Se a família dos triculus e a sua sagração telúrica colapsaram, então tudo acabou, certo?

Xeque-mate!

Sim, isso mesmo! Depois de tantos éons, o mal finalmente triunfou na Terra.

Depois que tudo terminou, quando não mais existiam os triculus, os mercenários das trevas e nem o trigo e a videira, consegui, solitariamente, compreender melhor e analisar alguns aspectos geopolíticos de toda aquela monstruosidade que varreu o mundo.

Vi que era fundamental entender esta crise coletiva, como um abissal mergulho em sua própria patologia psíquica. Assim ficou bem mais fácil apreender as razões que levaram milhões e milhões de seres humanos a participarem desta engenharia sicofanta. Populações omissas, servis e coniventes, assumiram uma postura cega, surda e muda ante a emergência de um Estado e um poder mundial que se alicerçavam em bases integralmente anômicas.

Classificar o que vi — e sobrevivi! — como um museu de bestialidades, é pouco, é muito pouco, ainda, para explicar o desenvolvimento e o êxito do ciclo teratológico que foi deflagrado e liderado pelos fiéis do Sol Negro.

Pense bem...

Os idealizadores do Vaga entenderam, com anos de antecedência, que fazer a gestão — social, política e econômica — da humanidade com aquela taxa demográfica absurdamente elevada, seria algo desvantajoso para um Estado totalitário de dimensão planetária.

O esmagamento fratricida dos triculus e o desaparecimento da legião de zumbis, diminuiu cruelmente esta taxa demográfica da humanidade de então.

Segundo os meus cálculos e estimativas, a taxa populacional do planeta caiu para mais da metade. Portanto, era um dado demográfico muito mais admissível e plausível de ser submetido aos mecanismos de controle social e político do Estado, numa escala mundial.

O pior de tudo no mundo que sucedeu esta tomada de poder, foi a desnecessidade de manutenção do ciclo de perseguição e terror. O mais angustioso em tais situações, é quando o terror deixa de ser praticado pelo Estado, não por bondade deste, mas por puro sadismo, pela certeza de que o mesmo já havia se instalado na vida de seus dominados; ele já é, portanto, uma realidade vívida, invisível e temida interiormente por todos.

Os venais agentes do Sol Negro já sabiam que muito mais importante do que destruir e matar, é administrar um controle perverso sobre as populações, mantendo-as o mais próximas possível da realidade de Thánatos; deixando-as à deriva e sem esperança em relação à vida, à Éros.

Aqui termina a Primeira Narrativa: o ciclo teratológico — fundamentado na anomia absoluta — que levou os seguidores do Sol Negro ao poder global.
Segunda Narrativa

“Se por um lado, a vingança é um prato quente que se come sadicamente pelas beiradas; por outro, a salvação é como um zeloso casal de pássaros: você sempre verá os pais, porém jamais saberá, em tempo algum, onde está o ninho com os seus ovos. É semelhante a uma árvore sagrada carregada de frutos: Não importa a época do ano em que vá observar, o ambicioso só conseguirá ver frutas verdes. A altura da árvore é irrelevante, porque a fruta madura não é para o faminto, mas somente para quem merece tê-la. A esperança e a salvação, portanto, sempre serão um segredo muito bem guardado!”


“...Corriam boatos, praticamente uma lenda, que uma única família da Cúpula Sacerdotal tricula, sobreviveu a este período obscuro e repugnante. Os pais, um bebê e seu avô deambularam de continente para continente, até se estabelecerem, em segredo, no mesmo território onde imperava o governo perverso de Fanaspatic. Felizmente, não eram boatos, muito menos uma lenda!”

O ciclo de terror acabou, no entanto o medo do indizível e a constante sensação persecutória pareciam eternas. Em meio a anarquia generalizada — que tinha se tornado rotina — e a instalação da insegurança jurídica mundial, a esperança, pelo menos a minha, se enraizava, até o presente momento, na lenda: a possibilidade de que uma única família de triculus da Cúpula Sacerdotal teria sobrevivido a sanha assassina do Sol Negro.

Somente hoje, passados muitos anos, posso compreender plenamente a razão que manteve em absoluto segredo a fuga e a sobrevivência desta família tricula como uma lenda.

É inexplicável, mas lá no fundo do meu ser, onde deveria habitar minha alma, cuja existência eu já começava a descreditar, mantinha-se uma certeza, sem um pingo de lógica ou racionalidade: Não era lenda, era algo real!

Após toda esta crise coletiva — e interior —, dizer que a minha salvação psicológica se deveu ao fato da lenda dos remanescentes ter sido uma realidade concreta, seria muito pouco para explicar a lenta e gradual unificação que aconteceu em todo o meu ser.

Num momento muito especial e único, a alma ressurgiu, e com em ato de redenção, a todos salvou.

Por considerar mais adequado ao encadeamento dos fatos desta segunda narrativa, deixarei vocês com a fala do portador das contradições, mas senhor e receptáculo das soluções, as quais nem mesmo ele poderia saber ou ter ciência.

Infelizmente, não tive a oportunidade de conhecê-lo melhor, embora esta tenha sido a única e mais importante maneira de saber a respeito daquele que redimiu tudo a sua volta — e não somente a mim.

Este foi Sanav Rostran.
Parte IV — Herèdem

Sou filho de pai e mãe triculus; logo, um representante da família que nunca se misturou porque nossos matrimônios só aconteciam entre membros da Cúpula Sacerdotal. Essa característica não fazia de nós mais do que ninguém, embora esta peculiaridade tenha sido utilizada pelos seguidores do Sol Negro, com a simples finalidade de nos desmoralizar e destruir.

Por mais incongruente que possa parecer, mesmo sendo uma simples criança, eu fui o primeiro — e único — triculu a questionar a nossa não miscigenação com o resto da família humana. Não obstante meu ponto de vista e minha ingenuidade infantil, nunca fui criticado, e muito menos censurado pela Cúpula Sacerdotal ou pela minha própria família, por esta e muitas outras posições que sempre tive e sustentei publicamente, desde cedo.

Após os sucessivos períodos de fuga, minha família e eu nos estabelecemos, em segredo, no grande continente, o gigante Nucatu, na região do Igaraiu, onde, por mais paradoxal que possa parecer, imperava o poder maligno de Fanaspatic.

A decisão de rumarmos para o vale do Igaraiu, nos domínios territoriais do nosso opositor, foi dada pelo pai de minha mãe, o velho Sover: o mais antigo e sábio membro da exterminada Cúpula Sacerdotal.

De acordo com nossa tradição, decisões vindas de veneráveis sacerdotes da Cúpula, jamais era questionadas, e muito menos contrariadas. Respeitosamente, eram acatadas, e pronto, pois sabia-se que estas escolhas estavam fundamentadas em uma rara sintonia que eles tinham com a realidade transfísica e infinita do Todo Poderoso.

Por uma inclinação pessoal, sempre fui questionador! E não pude deixar de pensar, na intimidade do meu silêncio, quando chegamos em Nucatu: “Por que o vovô escolheu este lugar, o mais infeliz e perigoso de todos para vivermos?”

Poucos dias após nosso estabelecimento no vale do Igaraiu, uma região inóspita do grande continente, o velho Sover me surpreendeu. Eu estava sozinho, olhando a paisagem e a transparência de um pequeno curso d´água, quando o vovô surgiu em meio a minha divagação: “Sanav, o vovô não está maluco, não! Além disso, não sou eu que escolhe. Tudo dará certo”.

Embora eu ainda fosse uma criança, desde esse dia amadurecia o claro entendimento de que o vovô possuía, a despeito de sua avançadíssima idade, uma lucidez absoluta de si, e uma percepção profética sobre fatos e pessoas, sempre que necessário.

Não demorou muito, e o tempo foi passando, quando em minha adolescência, por razões que eu desconhecia, recebi, através das mãos do vovô Sover, a minha sagração telúrica. Daí em diante, tornou-se ainda mais efetiva a orientação espiritual e educacional dispensada pelo vovô. Eu não era mais um menino: agora era um legítimo Filho do Fogo.

Foi durante esta minha fase de transição que o nosso paradeiro foi descoberto por rastreadores de uma poderosa milícia. Sob a anuência corrupta do governo de Fanaspatic, os milicianos foram treinados e mentalmente lavados para perseguir qualquer rastro — ainda existentes — da velha forma de vida tricula em meio a população submissa, mesmo sabendo que toda a sociedade dos Irmãos tinha sido trucidada, antes da instauração da Nova República Planetária: o Reich do Sol Negro.

A busca incansável por resíduos ou informações a respeito de triculus, passou a ser o combustível existencial que movia esta missão genocida com carta branca. Ela varria, dia após dia, todo e qualquer trecho do grande Nucatu, em busca de resíduos ou cidadãos simpatizantes ao ideal dos extintos triculus. Confirmadas as suspeitas, através de um minucioso serviço de inteligência, os “traços”, como eram designados os alvos a serem neutralizados e eliminados, eram literalmente “apagados”, não restando nada, a não ser um serviço limpo, profissional e muito bem sucedido da Sipatte: uma elite militar imoral, composta por guerrilheiros caçadores a serviço das trevas.

Os líderes do Sol Negro julgavam a missão delegada aos membros deste exército de miseráveis, uma perfeita busca fantasma, pois tinham a absoluta certeza de que não restava mais nenhum de nós sobre a Terra; como também, qualquer forma de resistência ou rebelião contra a RMSN — República Mundial do Sol Negro.

Numa triste alvorada de inverno, quando a noite começava a se mesclar com o dia, vovô me acordou subitamente, me dizendo para segui-lo o mais rápido possível.

Como éramos cidadãos totalmente pacíficos, portanto, nada beligerantes, nos tornamos presas fáceis dos milicianos que, covardemente, assassinaram meus pais. Antes da execução sumária, eles foram humilhados, sofrendo toda uma hedionda gama de sevícias e torturas. Após serem violentados por inúmeros destes mercenários, ambos foram decapitados e servidos como refeição aos animais silvestres da região.

Embora estivéssemos numa região isolada, sempre nos preocupávamos em conhecer bem o local e seus possíveis pontos de fuga, para qualquer eventualidade. E foi por um destes caminhos de emergência que o vovô nos guiou.

Os milicianos do Sipatte já estavam em nosso rastro, e este deveria ser, também, devidamente apagado.

Em desesperada retirada, rumamos, então, por uma das encostas que cercavam nossa localidade, o Igaraiu: um pequeno vale em forma de cone.

À medida que subíamos, ficamos vulneráveis, pois podíamos ser vistos e seguidos mais de perto pelos rastreadores e toda a tropa de sipattes. Foi quando notei que o vovô Sover estava estranho e possuído por uma inquietação que me atingia completamente.

Na subida íngreme, observei que o Grande Azul do vovô — o poderoso centro ígneo dos triculus — apresentava uma tonalidade de azul muito estranha, instável. É como se ele estivesse piscando e se mesclando com o prateado.

Quando atingimos o topo desta encosta, a mais alta montanha que formava este vale, o vô me pegou pelas mãos, beijou-me o Grande Azul, fazendo, em seguida, uma espécie de ritual. Depois, carinhosamente, me colocou atrás dele, virou-se para a face da encosta que tínhamos subido, e começou a chorar — em profundo êxtase.

Sem entender nada, eu olhava para baixo e via os nossos algozes subindo rapidamente, com sangue na boca, com o único propósito de nos matar.

“Isso não é hora para se ajoelhar e chorar, mas de fugir”, pensava enquanto via aquela cena desesperadora.

Algo surreal, no entanto, aconteceu!

O vovô Sover passou a chorar numa quantidade absurda. Suas lágrimas se multiplicavam com tal abundância, que se assemelhavam a vasão de cataratas em épocas de cheias. Assombrava, dava medo! Fiquei tão apavorado que dei alguns passos para trás, onde pude ver os seus olhos verterem um fluxo de lágrimas inimaginável.

Sim, é evidente! Toda aquela encosta se transmutou numa gigantesca cachoeira de lágrimas que tragou e afogou todos os rastreadores, arrasando toda a milícia de assassinos. Não restou um sequer.

Quando o dilúvio foi totalmente pranteado, o vô caiu de frente, e todo o seu corpo se liquefez numa enorme gota de lágrima que crescia como uma bola de neve, à medida que descia pela encosta úmida. Quando esta atingiu o solo entre o conjunto de montanhas, onde morávamos, todo o vale se transformou num gigantesco lago de águas lacrimais.

De onde eu estava, no topo da montanha, pude observar os restos mortais de toda aquela horda de criminosos boiando ou submersos em meio a insólita vingança da natureza, que utilizou o vovô Sover como instrumento de justiça avassaladora.

Após observar durante um bom tempo toda aquela calamidade surrealista, me lembrei de algo extremamente importante, que somente agora faz sentido para mim.

Desde criança, sempre gostei de escutar as diversas histórias do vovô com toda a atenção. Em uma delas, ele descrevia, de uma forma muito detalhada e sedutora, o grande mistério que envolvia o “segredo triculu”. Resumidamente, este dom extraordinário, incomum, se limitava a fabulas míticas, cujo conhecimento se perpetuava através de uma tradição oral, alcançando gerações e mais gerações, desde tempos arcaicos.

O vovô ainda dizia que este dom salvador era um segredo, porque nem mesmo o possuidor desta dádiva sabia algo a respeito dele. Ele existia como um fenômeno salvador espontâneo e independente da vontade humana, pois emergia em ação, somente em situações de crise iminente ou perigo extremo, não somente de um triculu, mas dá espécie humana.

A Radmoslav, uma graça e um fenômeno divino inerente aos triculus, podia ser qualificada com raríssima, pois o próprio velho Sover, o mais antigo Irmão de nossa linhagem, dizia que a última manifestação aconteceu há uns 1.500 anos, de acordo com o soube através do seu contato com as gerações mais antigas.

Eu me encontrava, por isso, diante de uma situação das mais paradoxais, pois, de um lado, fui expectador de um aterrorizante massacre familiar; e, de outro, me tornei testemunha de um milagre espiritual dos mais infrequentes.

No topo da mais alta montanha, eu sentei e meditei por um longo período. Após esta comunhão, compreendi, a despeito da minha adolescência, a complexidade do ocorrido e do quanto isso influenciaria toda a minha vida dali para frente.

A manifestação da Radmoslav, da qual fui testemunha ocular — única! —, aniquilou com toda a legião de homicidas do Sipatte. Desta vez, no entanto, quem não deixou rastro de espécie alguma foi a providência divina.

Compreendi, por um encadeamento lógico, que a destruição da minha família e de nossos pretensos carrascos, revelou algo bastante benéfico, embora o meu momento fosse trágico e da mais desoladora solidão.

Não sei muito bem a razão, mas tudo isso me salvou, protegeu meu destino, impulsionando-me para um futuro bastante isolado, porém nunca solitário, pois como um Irmão Consagrado, Deus nunca me faltava: Sempre me bastava em todas as minhas reais necessidades.

Fui objetivo comigo mesmo, pois a natureza já tinha se encarregado de realizar tudo por ali. Segui, então, o meu destino, e retirei-me do Igaraiu para sempre.

Não sabia muito bem para onde ir. Rumava para algum lugar desconhecido para mim, porém sabido de minha natureza mais sensível.

Os anos se passaram, e pude atravessar a imensidão do Nucatu com total segurança e paz, porque o autoritarismo dos fieis da escuridão terminou criando — sem querer? — todas as pré-condições para que eu vivesse em qualquer parte do imenso continente, sem ser incomodado em momento algum.

A tragédia e o milagre do Igaraiu eliminou qualquer possibilidade de comunicação entre o Estado e os mercenários do Sipatte. Logo, não havendo mais tropas assassinas, não mais existia, por sua vez, informação e...triculus. Por conseguinte, enquanto último representante da família dos Irmãos sobre a Terra, eu simplesmente não existia: me tornei um dado estatístico inverificável, um sobrevivente invisível e com nova identidade. Sanav Rostran agora é um homem comum, em meio a uma sociedade dominada pela política fundamentalista do Sol Negro.

Que ironia! Os métodos sombrios de dominação de um Estado totalitário e transcontinental, gerou, espontaneamente, um manto protetor sobre minha vida, que agora evoluía, com segurança, num absoluto anonimato.

Vários anos se seguiram, e eu atravessei algumas décadas absolutamente ciente de algo irrefutável: não existia mais triculu algum no mundo, além de mim. Isso me colocava, também, diante de uma insolúvel situação, pois um representante da Cúpula Sacerdotal, jamais poderia se casar com uma mulher que não fosse da mesma casta sacerdotal.

Então, estava muito bem definido em mim que eu não me casaria; portanto, não daria prosseguimento à nossa linhagem. Mas não era só isso!

Mesmo sendo um triculu consagrado nos mistérios telúricos, eu não poderia dar continuidade à nossa sagração una em meio aos homens, porque a sanha do totalitarismo, alinhado a uma abjeta utilização da ciência nano biotecnológica, tinha destruído integralmente as culturas do trigo e da videira em todo o mundo — além do lúpulo e da cevada.

Portanto, sem pão e vinho, era impossível efetuar a sagração do fogo e, por sua vez, perpetuar esta maravilha espiritual no seio desta humanidade, combalida pelas forças satânicas que, majoritariamente, escravizavam a Terra, ainda composta por um expressivo contingente de almas sedentas por Deus.

É fácil para um triculu treinado como eu, perceber tal realidade. Eu “via” os “sinais” e as “marcas” individuais que emergiam à minha visão, sempre que mantinha contato com as pessoas, nas mais diversas situações.

Caminhei, andei muito pela vastidão do grande continente. Mas certa noite, num sonho, fui visitado por uma visão, onde o vovô Sover aparecia sorrindo, dizendo: “Vá à província do governo. Pode parecer árido, mas o solo é fértil, fecundo”.

Ao acordar, fiquei admirado! O que de bom ou produtivo poderia vir da cidade que abriga a sede planetária do Sol Negro e, também, morada governamental do abjeto Fanaspatic?
No entanto, como norma de conduto e orientação espiritual, as decisões de um ancião triculu não são questionadas, mesmo que venham de um sonho.

Não questionei, ou sequer refleti.

Rumei para o Pollatan: foco de tudo o que é espiritualmente imoral e obscuro, o berço que gestou o Vaga e comandou o extermínio fratricida que acabou com os triculus, além de bilhões de seres humanos, sem um pingo de compaixão ou remorso.

Sem pestanejar, rumei à cova dos leões.

Esta foi a primeira vez, em toda a minha vida, que percebi uma expressiva inquietação interior que me levou, por sua vez, a um medo irracional. No entanto, não havia o que temer porque não existia ameaça alguma contra mim.

Por que, então, esta sensação sem sentido?

Eu não temo o desconhecido, embora suspeitasse: “Esta irracionalidade oculta algum sentido, algo novo que terei que me confrontar”.

Logo que cheguei no Pollatan, novamente um temor jamais sentido se apossou de mim — como uma sombra — por vários minutos, desaparecendo em seguida, como se nunca tivesse existido
Da mesma forma que um calafrio que produz simultaneamente frio e calor, esta “estranha sensação” produzia um medo agudo, aterrorizante, mas terminava em extrema felicidade.

Me desliguei deste confuso e paradoxal momento, e procurei conhecer a cidade negra, seus hábitos, população, costumes e, para não fugir da rotina, todas as possíveis rotas de fuga para qualquer eventualidade — embora tal precaução fosse absolutamente desnecessária.

Como o anonimato tinha se tornado minha maior salvaguarda, procurei me estabelecer, em poucos dias, junto ao mais rejeitado gueto da sociedade pollatan: O Agorin. Embora o Estado visse este núcleo sócio habitacional como uma aberração “inofensiva”, porque ainda trazia fortes resquícios da humanidade do período pré-Vaga, eu sabia que ali seria o lugar perfeito para me manter e, principalmente, estabelecer laços seguros para esta nova fase da minha vida.

Fui viver no Agorin, um universo são, dentro de uma sociedade perdida. Paradoxalmente, um exílio sem fuga. Lá moravam os Larrocos, que em pouco tempo entendi serem a elite intelectual de toda a Terra.

Composta por professores, historiadores, pensadores e doutores das artes e ciências, os Larrocos representavam um significativo fragmento do saber humano que sobreviveu ao expurgo realizado pelo Vaga e a todo o período de terror, desde que foi instaurada a República Mundial do Sol Negro.

De modo análogo, como último representante de toda uma linha de evolução tricula, eu me tornei, também, um fragmento, um remanescente de um passado espiritual muito bem sucedido.

A situação se assemelhava a uma grande ilha, onde havia um vulcão. Um dia, ele entrou em erupção e a destruiu completamente, restando, somente, duas pequenas micro ilhas, separadas, agora, pelas águas oceânicas. Estes dois fragmentos territoriais restantes, estas duas ilhas, tinham tudo para, unificadas, se transformarem num grande continente. Mas...as condições político-policiais não permitiam esta associação — no momento.

Mesmo podendo confiar integralmente nesta sociedade de sábios, eu decidi que não deveria me revelar e dizer quem eu realmente era, senão colocaria todo aquele complexo social e todos seus habitantes numa situação de extremo perigo.

Os dias se passaram, e o convívio com os seus membros me fortaleciam de uma maneira indescritível. Crianças, jovens, adultos ou idosos, todos me inspiravam porque me faziam lembrar do mundo e da sociedade construtiva edificada pelos triculus.

Gostasse ou não, esta situação me colocava, imperativamente, sempre à parte: o anonimato representava o meu porto seguro, independente da minha total confiança nos Larrocos. Já não era apenas uma questão de segurança pessoal.

Minha absoluta impotência me incomodava muito, deixava-me infeliz, frustrado porque eu possuía algo que gostaria de dividir e compartilhar com todos eles: a Sagração Telúrica, da qual tinha me tornado o último representante.

Inútil, também! Sem pão e vinho, nada poderia ser feito. Me sentia como uma equação sem solução, cujo único resultado possível era a realidade insuperável da impotência. No entanto, tinha a certeza — inabalável! — que os efeitos da sagração tricula eclodiriam com proporções atômicas no interior daquela sociedade amiga — e promissora...

Mais alguns dias se passaram, até que pudesse conhecer totalmente o território do Agorin, pequeno no tamanho, porém abrigava uma — oprimida e esquecida — micro sociedade que tinha tudo para alterar aquela realidade política local e mundial, principalmente. Esta certeza, eu levava, solitariamente, junto com a discrição e o fardo do meu anonimato.

Um pouco depois, tive uma incontrolável curiosidade de conhecer o respeitadíssimo setor dos professores. Mesmo sendo a menor ala habitacional do Agorin, os que ali residiam gozavam de grande prestígio, porque representavam a elite da instrução nos seus mais variados níveis naquela sociedade.

Em razão do vovô ter sido um instrutor magistral, minha inclinação pelos satair — os professores — não aconteceu à toa.

Todavia, no meu interior, bem lá no fundo do que me restava de esperança, eu intuía — sem compreensão alguma — que existia algo além disso...

Exatos sete dias após esta primeira visita, retornei à morada dos satair, com a firme intenção de tentar entender, mesmo que limitadamente, os meus sentimentos — enigmáticos, estranhos.

Não sabia eu que eram, também, insinuações gritantes do destino, pois em certos momentos da vida, a totalidade põe-se a falar contigo de maneiras estranhas e aparentemente incompreensíveis.

Embora não fizesse parte do perfil de um trículo se fechar ao ritmo da totalidade, naquele momento me encontrava alijado do contato com o mundo interno e sua realidade oculta.

Esta foi a primeira vez, em toda a minha existência, que me senti infeliz e solitário, embora fosse portador da mais elevada sagração de comunhão espiritual tricula. Rezava, meditava, porém todos esforços para elevar, sentir e comungar com o fogo eram infrutíferos, frustrantes.

Nesta condição, consumido pela infelicidade, caminhei pela estreitíssima e curta rua dos satair.
Nesta solitária caminhada, onde cada passo tornava a pequena viela numa estrada sem princípio e fim, uma força atrativa, um poder descomunal me levou à frente de uma casa simples, contudo aconchegante. Paradoxalmente, via a mesma como uma ratoeira invisível! A sensação de estar entrando — passivamente — num abatedouro era pavorosa, aterradora. Um indescritível calafrio que me contaminou por inteiro, fez meu corpo tremer da cabeça aos pés e transpirar bicas.

Ao entender que nada poderia ser feito, não resisti e deixei o caminho guiar os meus passos, até que entrei, empurrado!, no interior do — tempo... — terreno desta misteriosa casa. Rapidamente, percebi que estava na residência de um dos mais ilustres e respeitáveis membros de toda a sociedade larroca: a eminente professora Lusnua, a qual já tinha percebido em certa ocasião, não somente pelo brilhantismo e inteligência fora do comum, mas, também, pela rara e impressionante beleza que paralisava qualquer um, tamanho era o magnetismo desta mulher.

De modo estranho, uma mudança súbita.

A mesma força invisível que me arrastou até onde estou, agora me guia com mansidão, de uma maneira muito afetuosa, até o interior da casa. Ainda assim, eu continuava com um medo absoluto. Temer o inexplicável, se sentir oprimido por um pânico injustificável, me colocou de joelhos, num estado de submissão ao desconhecido — quisesse eu ou não!

Espantosamente, toda esta sensação desapareceu quando eu cheguei ao corredor: um pequeno caminho que ligava a sala a um outro cômodo da casa.

Sentindo que a imperativa força que me guiou até ali, bem como toda a atmosfera de terror e pânico tinham se retirado de mim, pensei: “Qualquer pessoa que passasse por um momento tão extremo como este, por um impulso natural de auto preservação, não pensaria duas vezes e sairia fugido dali o mais depressa possível”.

Apesar de todo o sofrimento, optei por pensar, enfrentar e, agora sob meu domínio, orientar os meus passos rumo ao desconhecido.

Não tinha como suspeitar, mas a decisão que tomei, decretou-me um caminho sem volta.
Parte V — Miràculum et salvatione — Renascere

“Você não pode modificar o destino, caso se veja como parte isolada do Todo; embora, em realidade, isso nunca exista, seja apenas uma ilusão, pois o universo é alteridade e relação, sempre. Se você participa deste campo vivencial, não existe destino, já que este é uma ilusão: só há ciclos e um Plano Maior, onde tudo é participação, no qual você pode — por uma simples questão de arbítrio — ser ator e coautor — ainda que não saiba..., ou se souber, nunca terá ciência completa de tudo”

Para minha surpresa, quando entrei neste comodo, vi o que jamais poderia prever ou sonhar.
Sentada num sofá art déco de veludo vinho, com a perna esquerda em cima do acento e a direita apoiada no chão, estava a lindíssima professora Lusnua.

Imediatamente, me dei conta que a única coisa que separava todo o seu corpo dos meus olhos, era um robe multicolorido de fina seda, transparente e tão macio e delicado que se moldava, sem maiores esforços, à minha imaginação e curiosidade.

Ela fazia suas unhas. Ao me ver, parou e, por breves segundos, me investigou, com seus maravilhosos olhos verdes.

Sim! De início, fiquei profundamente intimidado, mas rápido me desfiz do desembaraço ou de qualquer culpa. Ambos sabíamos o quão desnecessárias eram as palavras naquele momento.
Estas ocasiões únicas — raríssimas, diga-se de passagem — não são marcadas somente por corpos que se juntam: são almas que, por algum motivo, se reencontram e se reconhecem de imediato para algum propósito — muito além do simples desejo.

A força não vulgar que sustentava e impulsionava nosso encontro e união, se inseria nos domínios do arché magnetismo. Mesmo nos falando apenas com o olhar, tínhamos total certeza disso.
Tal certeza foi tanta que tudo aconteceu em menos de um minuto. Neste infinito lapso de tempo, Lusnua deixou a sua perna esquerda cair para o lado, revelando-me tudo o que antes era somente imaginação e fantasia.

Não sei como aconteceu, porque estranhamente perdi o controle sobre meu corpo e minhas ações e meu grau de consciência era cada vez menor. Quando me dei conta, já estava sendo carinhosamente abraçado pelas pernas e por todo o seu delicado corpo branco. Seus braços e mãos me desnudavam da solidão e do medo me guiaram até sua casa. É como se ela já soubesse de tudo, no entanto ambos não tínhamos a menor noção de nada. Parecíamos crianças adâmicas descobrindo o amor.

Minha consciência tornou-se puramente fotogrâmica. Não me era possível ver e compreender nada além do que rápidos instantâneos — quadros — do meu corpo por entre as pernas de Lusnua que se contorcia e gemia, sem conseguir falar ou gritar.

Quando estava prestes a mergulhar na inconsciência e desmaiar em cima do seu corpo perfumado de prazer...Um cheiro, um odor conhecido foi lentamente me trazendo a consciência de volta. Ele vinha do corpo de Lusnua, e emergia do meio de suas pernas, por onde percebemos um corrimento estranho. Inicialmente, pensamos ser sua menstruação, mas não! O corrimento tinha um tom bordô. Como um bom Filho, imediatamente identifiquei e...não era simplesmente um tom ou uma cor definida: era bordeaux!

Bastou eu pensar isso, para compreender que o corrimento não procedia dela: ele vinha de mim!
Em uma nova investida, uma força ainda mais intensa, contra a qual eu não poderia resistir ou sequer lutar, apossou-se novamente dos meus movimentos, ações e, gradativamente, mergulhou minha consciência num estado de embriaguez...extática.

Agora com mais vigor e força, voltei a penetrar em Lusnua, pois o odor transmutou-se num irresistível e sagrado perfume que me fez desejar ainda mais aquela linda e apaixonante mulher branca e de seios pequenos. Antes que eu pudesse gozar, olhei com intensidade para o seu corpo, a partir do seu vente, e vi que uma corrente, uma coluna de luz subia deste ponto até o topo de sua cabeça. Com os olhos revirados para cima, ela sorria como se fossemos coisa única.

Então eu tive o mais vibrante orgasmo que um ser humano poderia ter — ou mesmo suportar!
Eu gozava golfadas e mais golfadas em Lusnua. O orgasmo não parava, parecia que não teria fim. Gritando de prazer, eu também roguei a Deus que terminasse com aquilo, pois eu não suportaria mais um segundo deste maravilhoso prazer. De nada adiantaram as minhas preces! Eu simplesmente não parava de gozar. A intensidade do meu orgasmo foi tanta, mas tanta que a vagina de Lusnua não comportava tamanha quantidade de sêmen, que começou a escorrer pelas suas pernas.

Notei, então, quase desfalecendo de tanto prazer, que eu não estava gozando sêmen, mas vinho, o mais nobre e excelso Grand Cru que já foi visto no mundo, porém nunca degustado. Não sabia de onde ele vinha, mas estava eclodindo de dentro de mim, como seu eu fosse a reunião de todas as videiras que outrora existiram no mundo.

Cabernet Sauvigno, Merlot, Pinot Noir, Syrah, Chardonnay, Sauvignon Blanc, Riesling Renano, enquanto eu amava Lusnua — sem parar de ejacular este sagrado vinho —, eu podia sentir e diferenciar todos matizes e boques destas e de tantas outras uvas que ali se faziam presente — como um milagre!

Por um ato voluntário e de absoluto desprendimento, me rendi aquele sacrifício último.

Um latejante fluxo de minha vida foi derramado, por mais uma vez, onde jorrei uma quantidade ainda mais absurda de vinho no útero de minha amada. Após isso, não suportando o peso do meu próprio corpo, cai no chão, ainda com um resquício de consciência.

Mesmo debilitado, me dei conta de que este seria o derradeiro momento para sagrar aquela maravilhosa mulher, concedendo-lhe a iniciação tricula. Estatelado no chão, meio nu e meio vestido, meus lábios tocaram o chão encharcado de vinho, que facilmente desceu pela minha garganta. Com a minha mão direita, segurei a sua esquerda, no entanto, pensei: “Como sagrar e transferir o fogo àquela mulher, se não há pão?”

Levantei minha cabeça, e olhei Lusnua na mesma posição em que a encontrei ao entrar no seu quarto, porém totalmente nua e em absoluto êxtase. Seu clitória latejava com um brilho rubro metálico e entre suas sobrancelhas um círculo de azul índigo pulsava intensamente.

“Não consigo! Não há pão!”

Assim como disse, no início desta segunda narrativa, que seria mais adequado deixar o Sanav Rostran falar e narrar os fatos que se seguiriam, chegou o momento de interrompê-lo, pois não há mais forças e vitalidade para sustentar a sua fala. É humanamente impossível fazer isso!

Sim! O vinho era abundante e tão miraculoso quanto em Canaã. Onde estava o pão, meu amor Sanav? Você não se deu conta, mas se fartou do Dele a todo momento — sem saber! Este é o meu corpo e você foi o meu sangue. Não fizemos somente amor: unimo-nos em eucaristia mútua.

Quando você levantou a cabeça, segurando minha perna com sua mão, achando que tinha fracassado, há muito que eu já havia sido — durante aqueles momentos — ungida e consagrada por ti, porque o fogo passou a habitar em mim por sua causa, meu amor.

Um fogo avassalador que me consumia por inteira e uma vivida sensação de estar comungado com algo que transcendia o próprio corpo, me fez parir, ante os nossos olhos, quatro grupos com sete sementes: cevada, lúpulo, trigo e videira, estando todas envoltas e lubrificadas no mais puro e perfeito azeite de oliva.

Estes grupos de quatro Sementes-Mãe, cada uma com sua cor metálica e vibrante, ficaram flutuando no ar, pairando ente mim, estasiada no sofá e Sanav, aniquilado no chão.

Em seguida, como numa divisão celular, aconteceu, em pleno ar, a seguinte expansão matemática:

Os Quatro Grupos de Sementes-Mães

Trigo

Videira

Cevada

Lúpulo

7 sementes

7 sementes

7 sementes

7 sementes

7 x 19 = 133

7 x 19 = 133

7 x 19 = 133

7 x 19 = 133

133 x 4 = 532

133 x 4 = 532

133 x 4 = 532

133 x 4 = 532

532 x 19 = 10.108 sementes
10.108 x 4 = 40.432 sementes

Agora, o mais lindo!

Tal qual vaga-lumes, as 40.432 sementes se mesclaram numa maravilhosa profusão luminescente, até que atingiram uma mistura equilibrada, um conjunto coeso e estável de múltiplas luzes, vibrando harmonicamente com a vida e o destino do porvir.

Logo em seguida, um vento insólito que vinha de todos os cantos, dispersou as sementes-filhas para o céu, em todas as direções da Terra.

Olhei para o chão. Já em seus últimos momentos e olhando firmemente para mim, Sanav desmaiou e caiu com seu rosto em cima da enorme poça de vinho que ele mesmo tinha gerado. Em seguida, teve início um fantástico processo de dissolução. Suas vestes e seu corpo se liquefizeram, até se desintegraram, desaparecendo por completo no vinho.

Em pouco tempo, creio que não mais do que três minutos, algo começou a brilhar em meio aquela inundação vinífera. Um pequenino corpo começou a emergir lentamente dali. Era algo escuro, misturado com o vinho que escorria de sua superfície. Aos poucos, foi tomando forma um pequeno e negro escorpião alado, cujas asas emitiam um som constante e forte.

Ele emergiu do vinho, na minha frente, por entre as pernas e se aproximou do meu rosto, olhando-me fundo nos olhos. Eu senti quem realmente ele era e o que faria a seguir. O pequeno aracnídeo saiu em alta velocidade pela janela, alçando voo rumo a um ato de justiça.

Inicialmente pequeno, a medida que o aracnídeo alado voava e ia mais alto, maior se tornava o seu corpo negro e suas asas multicoloridas. Estupefatos, os moradores do Agorin olhavam aquele corpo tomando proporções impensáveis. Como suas dimensões progrediam em gigantismo, o som e a vibração de suas asas eram ouvidas por todo o Pollatan. Medo e pânico se apoderaram da cidade maldita, que testemunhava um “raro evento mítico” de origem tricula, cobrindo — e já fazendo desaparecer! — o céu da região.

Nada poderia detê-lo! Quanto mais alto voava, maior e mais poderoso se tornava o escorpião negro!
Parte VI — Justítia

A sombra voadora deixou os domínios do Pollatan, em direção a uma região pantanosa, próxima alguns quilômetros dali, onde ninguém ia ou vivia, devido aos perigos inerente e conhecidos deste lugar inóspito, chamado Avala L.

Bem no meio deste inacessível pântano, cercado por uma densa floresta, havia um pequeno lago circular de águas fétidas, medindo cerca de uns 25 metros de diâmetro e povoado por perigosos répteis, cobras e serpentes marinhas. No centro deste, uma ilhota com um enorme e antiquíssimo monólito em forma de “L” (90)º que comportava uma única pessoa. Por ser tão grande, suas dimensões excediam, em muito, o próprio tamanho da ilhota, fazendo com que os horrendos habitantes do lago subissem nele, ora para descansar, ora para tomar banho de Sol ou devorar suas vítimas ou sacrifícios oferecidos pelos adeptos que ali celebravam os seus hediondos ritos de comprometimento e submissão absoluta às trevas.

Com o Sol a pino, sozinho e sem medo de espécie alguma, lá estava um dos mais bem guardados segredos da República do Sol Negro: duas vezes a cada mês, uma a meia-noite e outra ao meio-dia, Fanaspatic ia para lá fumar a flauta do paganiarã em cima do monólito sagrado, o IT2/5, cujo aparecimento remonta a própria fundação da seita do Sol Negro na Terra, em tempos perdidos — praticamente no mesmo período em que a Cúpula Sacerdotal tricula se estabeleceu entre nós.

Pouco se sabia a respeito da utilidade do IT2/5. Provavelmente ele seria um conversor de comunicação e criptografia quântica avançadíssimo que estabelecia o vínculo secreto da elite da seita, com os seus mentores alienígenas — o Mal Cósmico!

Além de uma origem incerta, a constituição material deste monumento, também era um mistério. Ele tinha a aparência de uma pedra muito antiga, mas na verdade não passava de uma liga metálica inexistente em nosso mundo.

Além disso, este material demoníaco só podia ser tocado e manipulado física e psiquicamente por aqueles que já haviam empenhado a própria alma a serviço do materialismo e da escuridão. Quem não tivesse esta vinculação espiritual, seria dilacerado instantaneamente pelas energias veiculadas por este engenho maligno. Portanto, raros eram os fiéis do Sol Negro que podiam se atrever a tamanha façanha.

Fanaspatic, como líder desta elite, possuía ainda um outro dom que o diferenciava dos demais membros graduados do seu grupo: ele consumiu o paganiarã, sem que fosse afetado pelos seus efeitos nefastos. Para se ter uma ideia da periculosidade desta droga, basta dizer que ela era mil vezes mais poderosa e letal que o vício da heroína, bastando uma única dose para destruir e, sem seguida, matar o seu usuário. O que terminou inviabilizando este narcótico comercialmente, embora fosse barato e de fácil cultivo.

No entanto, o objetivo desta droga extraterrestre não era a comercialização. Sua função seria facilitar a sintonia e o entendimento sobre o elevado nível de criptografia que velava as intenções dos verdadeiros mentores de toda a obra do Sol Negro na Terra.

Fanaspatic consumia esta droga fielmente deste os 12 anos de idade. Portanto, ele não podia ser qualificado como um viciado, mas sim um raro e talentoso servidor do mal — desde a adolescência.

E este era um daqueles dias em que a “majestade” — seu codinome oculto — se entregava ao rito de, digamos assim..., solar o consumo do paganiarã, em sua flauta sagrada, sempre coberta por uma fina resina: uma complexa sopa neurotóxica que mataria o pior dos peçonhentos.

A flauta transversa, o baranu, só emitia o código sonoro e luminoso de contato com a realidade sombria, quando ele tragava uma escala oculta que emitia infrassons imperceptíveis até para um elefante ou qualquer outro membro do mundo animal. Por uma razão muito simples: as hostes que obsediavam-no eram expressões de vida que se encontravam abaixo do mundo animal e da própria realidade espiritual quíntupla da humanidade. Definir os instrutores de sua majestade, Fanaspatic, como bestas ou espíritos de consciência sub-humana e infra-animal, seria o mais correto.

Não poderia esperar, portanto, um desfecho piedoso para com aquele que nunca teve qualquer tipo de compaixão pelo gênero humano. Não era uma vingança que estava em andamento, mas um puro e natural restabelecimento de forças no seio da humanidade e de toda a natureza. Logo, o voo da redenção estava totalmente ciente dos perigos que incorria, ao se aproximar da região de Avala L e do sagrado IT2/5.

O dia estava claro, o céu totalmente azul e o Sol do meio-dia, inclemente. Neste cenário perfeito, lá estava Fanaspatic de pé, em cima do monumento ao mal e possuído, pois já havia consumido o paganiarã, no rito sagrado do baranu. Motivo pelo qual as feras do lago estavam agitadas, porque toda vez que ocorria esta epifania negra, elas ficavam indomáveis e com um furor destruidor amplificado.

Inesperadamente, um vento angulado e forte entrou pelo lado oriental do templo, sumindo em seguida como se nunca tivesse passado por ali. Fanaspatic, paramentado com suas insígnias e vestes vermelho rubi, estranhou, mas deu continuidade ao rito infernal. Agora, um poderoso som se dirigiu para o local. A vibração alcançou uma intensidade tal, que amedrontou até os temidos habitantes do lago, ao ponto de paralisá-los.

Sua majestade, o sumo sacerdote, imaginou que fosse uma manifestação especial dos seus mentores, algo novo, mas...

Um escorpião alado e com dimensões gigantescas, alcançou, enfim, o lago de Avala L. Ele era tão grande, mas tão grande que cobriu por completo toda aquela maldita área pantanosa, ao ponto de eclipsar o próprio disco solar, que naquele momento despontava no zênite com toda a intensidade.

Foi algo assombroso e nunca visto em toda a história humana! Nem mesmo no conjunto de todas as escrituras sagradas, algo assim foi registrado. O gigantismo deste aracnídeo voador, terminou por gerar um fenômeno astronômico ímpar: um eclipse total do Sol, sem a presença da Lua.

A duração deste fenômeno ou milagre mítico foi exatamente a mesma de nossa união vínica e eucarística: não mais do que um minuto.

Escuridão absoluta. Nem mesmo os seus habitantes naturais, os animais da floresta ou os seres do lago, ousaram se manifestar ou desafiar o que estavam presenciando. Passividade e submissão completa. O silêncio das trevas dizia tudo por si só. Desta vez, não haveria o céu e suas estrelas; e mesmo que fosse possível, certamente elas revelariam um infausto presságio à sua majestade.

O tempo foi passando. Entretanto, como demorava, parecia uma eternidade. Mas ele chegou ao fim!

Após o eclipse no templo, o gigante alado se moveu suavemente do poente, onde estava, para o norte, ficando, deste modo, em linha, exatamente em frente ao seu destino, localizado no centro da ilhota.

Embora o maldito não soubesse ou sequer suspeitasse, o seu patíbulo já estava pronto. O dia do acerto de contas tinha chegado!

A psicose avançada da majestade, manifesta num colérico projeto de poder, arrogância absoluta e crueldade, fizeram com que ele baixasse suas guardas diante do seu algoz, ao julgar que estava sendo “visitado” por uma manifestação divina de seus mentores.

“Não é uma simples questão de crença. É muito mais profundo! Milagres e graças fazem parte da existência, assim como vida e morte”

Foi seu primeiro e último engano!

Sorrindo, Fanaspatic dirigiu seu olhar para o norte do templo, na direção de um escorpião alado, de tom vermelho laqueado e de proporções inconcebivelmente ciclópicas. Como num jogo de xadrez, o gigante alado se deslocou com suavidade por sobre as águas do lago, batendo suas asas multicoloridas até um ponto em que ficou face a face com esta figura sombria.

Com o corpo totalmente imóvel, sustentando-se no ar através do uníssono movimento de suas asas, o ser alado preparou um movimento de grande mestre.

Todo o seu conjunto ocular — lateral e mediano — se concentrou hipnoticamente em Fanaspatic, deixando entender que era obediente à vontade deste corrupto sumo sacerdote. Para completar o ardil que colocaria o apenado numa situação sem fuga, o escorpião tocou os pés de sua majestade com suas pinças colossais, em sinal de completa submissão. Simultaneamente, com todo cuidado, sua cauda iniciou, bem vagarosamente, um movimento imperceptível, quer formou um arco perfeito em torno do sentenciado.

Os atos de aparente servilismo do escorpião foram fatais à execução da presa.

Movimentos perfeitos. Peças em posição. Agora, o tabuleiro pedia um único e último movimento. O rei deve morrer!

Para sua total admiração, aquele ser mítico — e pai das sementes! — emitiu três poderosos e audíveis sons. Dois semitons e um tom: as três principais notas da escala oculta que era executada durante o ritual do baranu, onde ele consumia sua quota mensal de paganiarã. Depois disso, o colosso voador emitiu três spots de luz com todos os olhos do seu conjunto ocular: dois curtos e um longo, refletindo uma luminosidade rubro metálica que iluminou sua majestade por inteiro.

Vendo isso, ele sorriu, pois teve certeza que o gigante alado só poderia ser um aliado, enviado por seus mentores.

Imediatamente após isso, o escorpião emitiu as mesmas notas em oitavas divinas, no tom que invocava o santo anjo Rushing: a sagrada e onipresente ave que guardava As Quatro Distâncias.

Com seus olhos transformados num enorme painel azul índigo, a mesma cor do Grande Azul dos triculus, Fanaspatic entendeu — desesperado! — que algo dera totalmente errado.
Mas agora era tarde!

Tudo aconteceu em frações de segundos, eliminando qualquer possibilidade de reação do maldito, que se viu possuído pelas pinças do seu algoz. Nesta posição, sem tempo hábil para esboçar qualquer resistência, um movimento seco de sua cauda, introduziu o aguilhão pelas costas, num ponto entre as escápulas, próximo ao coração.

À medida que sua majestade era inoculado por uma desconhecida neurotoxina esmeraldina, uma dor insuportável tomou conta de todo o seu corpo. No entanto, não era uma simples dor, mas um conjunto, uma síntese das dores e sofrimentos que esta criatura repulsiva infligiu sobre grande parte da humanidade.

A dor foi tanta que ele não conseguia vocalizar o que sentia. É lógico! Como um psicopata pode sentir a dor de bilhões de seres humanos? Não sendo capaz de sentir, ele paralisou pendurado no aguilhão.

Em virtude da minha união com Sanav transcender os domínios da objetividade e do corpo, eu vi, de onde estava, que o arco em torno de Fanaspatic, tinha se transformado num círculo perfeito, no momento da ferroada. A algema se fechou. Não há mais fuga e muito menos clemência!

Foi quando surgiu nos céus de Avala L, o invocado Rushing, com seu amoroso canto de paz e justiça. Embora pequeno, discreto, o poder desta ave sagrada transcendia as próprias dimensões do Sanav alado. Bem alto, de onde circunvoava, já observando o centro do lago, a pequena ave soltou um canto, uma senha de libertação maravilhosa que foi audível até no Pollatan, indicando que Sanav e sua vítima aferroada, deveriam deixar a ilhota e toda a região o mais rápido possível.

Assim se fez!

Os dois, então, iniciaram a sua jornada juntos, rumo ao justo sepulcro de Fanaspatic. Antes, porém, o Rushing soltou um dos seus ovos, com gemas de mágica alomorfia, no centro do lago...

Como a pequena ave era a guardiã das distâncias, ela sabia, de antemão, para onde escoltar o voo do carrasco, que trazia em seu enorme aguilhão, todo o peso do maior traidor e genocida da espécie humana.

Eles rumaram para o Igaraiu, onde seria definitivamente justiçado o abjeto senhor do Sol Negro. A viagem foi rápida. Eles cruzaram uma vasta região do Nucatu, chegando ao local com a firme intenção de concluir a sentença.

Sim! A execução seria finalizada no local onde os pais de Sanav Rostran foram cruelmente assassinados pelos membros da Sipatte e, também, palco da Radmoslav do seu avô Sover, que terminou por transformar todo o vale num lago de lágrimas.

Novamente, bem lá do alto, o Rushing emitiu um dos seus belos cantos, soltando, em seguida, outro dos seus ovos mágicos no vale de lágrimas, que imediatamente se transformou num enorme poço de fogo líquido dourado.

Com uma de suas pinças, sem maiores cerimonias, o ciclópico escorpião tomou o corpo de Fanaspatic, retirando-o do aguilhão. O corpo, agora, está sob a guarda segura da pinça esquerda. Porém, antes da derradeira execução, a cauda de Sanav desferiu, com absoluta violência, uma ferroada no topo da cabeça de sua presa, inoculando, novamente, mais uma dose de sua letal neurotoxina esmeraldina. Em seguida, a pinça direita moveu-se à justiça, decepando, num único movimento, a cabeça do corpo. E como dois tubos de ensaio, o sangramento do corpo e da cabeça foram direcionados, por ambas as pinças, para o centro do lago dourado.

De cima, onde estavam os seres alados, era possível perceber que o sangue — imundo — de Fanaspatic não se misturou, apenas preencheu o centro ígneo do lago dourado. No entanto, a mistura se tornou homogênea, quando o corpo e a cabeça foram lançados ao lago, gerando uma explosão que tudo unificou.

Agora, aos poucos, como de encanto, o vale do Igaraiu foi se purificando, até que transmutou num lago de rara beleza e paz.

Missão cumprida? Talvez sim, mas creio que não!

O Rushing despediu-se, com outro belo canto, dirigindo-se, em seguida, à guarda das Quatro Distâncias. Ninguém entendia, mas ele fazia isso simultaneamente. E assim ele seguiu, se mantendo indivisível e voando para as direções.

Solitário no céu, Sanav sabia que deveria voltar, pela última vez, ao Pollatan. À medida que retornava, suas dimensões iam voltando ao normal. Quando chegou, sequer foi percebido, pois era apenas um minúsculo aracnídeo alado de cor vermelha.

Ele entrou pela mesma janela que saiu, encontrando-me no mesmo sofá, seminua, cansada, mas feliz com seu retorno.

Em seguida, pousou suavemente em minha mão esquerda. Em lágrimas, toquei o seu corpo vermelho com meu indicador direito e o batizou, sagrando Sanav como o grande Berýlux. Ao tocar o corpo de Sanav com meu dedo de condão, o exosqueleto vermelho transmutou-se num corpo de esmeralda luminoso e translúcido.

Com o brilho azul índigo de todos os seus olhos, Berýlux despediu-se de mim e partiu atravessando, pela última vez, a janela de minha casa.

Não sei se ele foi para o céu infinito ou se possuía alguma morada terrestre, mas à medida que ia subindo aos céus, seu corpo esmeraldino ia aumentando sem parar, até que atingiu, novamente, proporções ciclópicas e definitivas.

Aqui termina a Segunda Narrativa.
Parte VII — Interlúdio (ao pretérito)

Muitos anos se passaram, desde aquela tarde em que conheci Sanav. Foi nosso único e último encontro. Jamais poderia imaginar que eu fosse testemunhar e participar do raríssimo fenômeno triculu: a Radmoslav. A partir daquele momento, nunca mais ingeri alimento algum, fosse ele sólido ou liquido. Eu bebi de um vinho que me embriagou a Alma e que terminou por nutrir o meu corpo pela eternidade. Aquele sabor e seu perfume se mantem inalteráveis até hoje. Desde então, me vi impossibilitada, também, de me unir com outro homem, pois passei a amar com profundidade e desapego todo e qualquer um que me quisesse de coração. Tendo me tornado fogo, pão e vinho, como poderia amar uma única pessoa?

Não sei se vocês notaram, mas Deus se fez conhecer em nossas vidas, não pelo sexo, pela razão ou pelo coração? Mas através do paladar e do olfato. É fato!

Todos devem estar curiosos em saber, é claro, que fim levou o templo natural do Sol Negro, o lago de Avala L e o seu monólito sagrado, não é verdade?

Bem..., todo o pântano e sua população de animais nativos (terrestres, aéreos e aquáticos) nada mais eram do que reféns de uma mentalidade desvirtuada e perversa. Portanto, quando o Rushing jogou o seu pequeno ovo mágico, o mesmo caiu bem no meio da ilhota, em cima do IT2/5, destruindo-o por completo. A ilhota, no entanto, foi preservado porque ali germinou e cresceu um belíssimo girassol que terminou por salvar todo aquele entorno.

Durante à noite, o pequeno girassol abria-se, dando início ao processo de purificação, extraindo todo o psiquismo deletério e mágico que ali tinha se instalado. Paralelamente, emitia radiações amarelo-ouro que — lentamente — foram pacificando e devolvendo o equilíbrio a todo aquele complexo ecossistema.

Encanto macabro, perversão, tudo foi desfeito! As feras selvagens voltaram a ser o que sempre foram: animais naturais.

Além das milhares de sementes que pari, as quais “ressuscitaram” as culturas agrícolas extintas pela tirania do Sol Negro em todo o globo, eu também dei à luz a um casal de gêmeos, nove meses e meio após todos estes eventos. Eu os batizei como Annalumya e Lyberu. Ambos cresceram e se multiplicaram, dando origem a infindáveis ramos familiares que povoaram a Terra com esta descendência forte e renovada.

No entanto, para que esta sagrada heterose fosse perfeita e incorruptível, um ciclo biológico e reprodutivo deveria ser realizado pela humanidade vindoura. A partir do casal de gêmeos, filhos diretos de Sanav com Lusnua, aconteceria o seguinte, durante 19 gerações.

Toda menina, quando mulher e lactante, produziria um leite esmeraldino; já os meninos, quando adultos e maduros, produziriam um sêmen bordô com espermas de base esmeraldina, também.

Assim se fez, assim se cumpriu durante quase oito séculos.

Um vigor híbrido e espiritualizado cobriu a Terra com a multiplicação destas gerações por muitas e muitas décadas, estendendo esta herança genética através dos quatro cantos do mundo. O benefício geracional e coletivo foi tão intenso que erradicou o alcoolismo e a dependência de muitas outras drogas em toda a extensão da sociedade.

Cumprido o ciclo citado, as características bio reprodutivas da humanidade retornaram ao modelo clássico. Devotadamente, como uma forma de respeito e homenagem a todos que contribuíram à disseminação deste ciclo de renovação, as gerações seguintes fundaram a mais importante festividade tricula, realizada a cada dezenove anos: o Lagar Alado, pois neste período, em algum ponto da Terra, Berýlux ressurgiria para abençoar o culto e todos seus filhos espalhados pelo planeta. O pão e o vinho, portanto, voltaram a ocupar o ponto central de todo o — agora reorganizado e reestruturado — culto triculu e sua sagração única através do fogo.

Sempre na metade do ciclo do Lagar Alado, na festividade conhecida como Introito, dedicada a cerveja, os interessados seriam pré-iniciados e informados a respeito da benção maior dos triculus: a Sagração Telúrica. A partir do Introito, todos os interessados ou postulantes teriam menos de 10 anos de sucessivas instruções e reflexões até que recebessem a unção maior no Lagar seguinte.

Como o próprio tempo mostrou, os benefícios e êxitos — materiais e espirituais — ressurgidos na Terra foram espetaculares. No entanto, os reflexos danosos causados pela tirania mundial do Sol Negro ainda eram exponencialmente superiores. Um grande e duro trabalho deveriam ser feitos para depurar e extirpar, em definitivo, “as sementes” do mal.

Após a execução de Fanaspatic, todos os seus cruéis seguidores e colaboradores, foram sentenciados a depauperar em vida. A maioria, sem exceção, desenvolveu sérias patologias de ordem psíquica que os tornaram inúteis não só para a vida, mas até para a morte.

Certa vez, antes de conhecer Sanav, um desesperado que sobreviveu ao período de terror disse: “Quem morre encontra-se com o passado. O futuro é um privilégio ou desgraça dos vivos!”.
O desespero leva-nos a dizer coisas tão profundas e à frente do nosso tempo, que só mesmo o amanhã pode ser capaz de entender ou desvendar.

Você acha que sou o futuro e você o passado? Pois, bem: O presente mente em nossas mentes. O resto é ilusão, passatempo!

Mas o futuro era promissor...

Como mãe das sementes, não estou orgulhosa de si! Apenas feliz e radiante em ver que as sementes caíram em solo fértil e fecundo, gerando frutos saudáveis e perfeitos à evolução e ao reerguimento da ordem, da liberdade, do direito e da luz.

Muito há o que ser feito, ainda, nos reinos que auxiliaram o processo de purificação e salvação do gênero humano. O que há de ser realizado, como gratidão e dívida aos Senhores dos reinos, é enorme.

O que sei a respeito do futuro, não são boatos e muito menos uma lenda! É apenas um novo e muito bem guardado segredo que levará adiante tudo o que teve início conosco, pois a heterose que renovou o mundo, não se restringe somente a um processo biológico e espiritual: Ela se estenderá, do mesmo modo, nos domínios da sociedade e da política do amanhã.

“...Em um determinado período, logo após o cumprimento das 19 gerações, algo extraordinário — e inesperado — aconteceu!

Num lugar ignorado, em algum ponto da Terra, uma família de camponeses, com uma única filha, foi agraciada com a visita do salvador alado.

Antes que a tarde terminasse, enquanto os pais desta criança de 10 anos trabalhavam na terra, surgiu das montanhas do poente, a preciosa joia alada.


O gigante esmeraldino voou na direção desta criança, que desde cedo já demonstrava uma beleza divina e rara de se encontrar no mundo. Ninguém se assustou com a visita, nem os pais e muito menos a menina. Curioso e impressionado com tamanha beleza, Berýlux se aproximou mais ainda dela. Por algum motivo, ele quis realmente ver, bem pertinho, quem era aquela menina, cuja beleza encantava até os cegos, curando-os completamente.

A menina ficou tão fascinada com aquele escorpião gigantesco flutuando no ar, que resolveu fazer um carinho em sua fenomenal pinça esquerda. Berýlux ficou tão emocionado e surpreso com aquele gesto espontâneo e carinhoso que pousou no chão e caminhou um pouco em torno da menina.

Admirados, os pais perceberam que no exato momento em que a filha acariciou o gigante alado, um ponto vermelho, mais precisamente um coração, passou a ser visível no centro de seu colossal corpo esmeraldino e translúcido.

Ele então voltou a se elevar no ar. Em seguida, com todo cuidado e carinho, levantou a menina com suas pinças, acima de sua própria cabeça, de modo que o bater das asas pudessem atingir o corpo dela totalmente. Assim se fez! E à medida que o vento era soprado sobre a linda menina, através destas asas multicoloridas, suas vestes foram expulsas do seu corpo, deixando completamente nu o seu corpo inocente, frágil — mas que ocultava um grande poder! Em seguida, Berýlux aproximou o seu aguilhão o mais próximo possível dela, formando um arco perfeito. Um spot líquido, da mesma cor de sua imensidão física, foi então borrifado em seus corpos, marcando-os com um perfume indescritível, irresistível.

Berýlux foi calmamente em direção aos pais e, respeitosamente, entregou a filha nua e definitivamente imantada com uma fragrância que definiria o destino dela e de muitos "futuros".

Os pais a receberam das enormes pinças do salvador alado e a cobriram com uma manta, pois ainda não tinha chegado o momento daquela beleza e de toda a sua misteriosa fragrância serem desveladas ao mundo.

Caberia ao olfato de outros amanhãs enxergar e compreender o que estava sendo, agora, ocultado.


Como um divino beija-flor, Berýlux os deixou num magnífico vou de costas, em direção ao poente...”

Se você quer compreender melhor o que realmente aconteceu com a filha destes camponeses, basta entender que ela não foi somente “elevada” da terra ao ar: Como uma necessária precaução, Berýlux “alou” esta linda menina, protegendo ela e os planos do amanhã...

Mas isso é uma outra história. São outras “sementes”...

Terceira Narrativa...