sábado, 1 de agosto de 2009


Parte II - O cão salivento de Mangaratiba

unTroglodita


Tudo escureceu a minha volta; inclusive dentro de mim.

Acho que não consigo mais enxergar pela vista da sanidade.

Tal qual João que foi arrebatado pelas santíssimas forças do céu e de Nosso Senhor Jesus-Cristo à ilha de Patmos para ver o fim dos tempos, este miserável ser que vos fala era abduzido pelas potências do absurdo para uma cidade carioca; provavelmente para ver o entrópico fim da minha sanidade, bem distante da santidade, corroída por amendoins.

Estou flutuando num lugar desconhecido, mas nem tanto.

Isso aqui é Mangaratiba! — concluí.

Ao passo que ia pairando naquele espaço sem sentido, percebo um cão sujo e muito maltratado que imediatamente me vê. Não sei o porquê, mas somente ele conseguia me enxergar, o resto das pessoas que transitavam pela beira mar ou que conversavam e bebiam nos bares, não.

A atmosfera local estava totalmente preenchida de alegria e ansiedade: era mais um ano que agoniza o seu fim e ensaiava o seu baile da Ilha Fiscal.

Há pouco menos de vinte e quatro horas do terceiro milênio, vejo-me assim: fitado por um cão sujo e faminto que além de babão era dotado de uma percepção extra-sensorial.

As razões pelas quais o destino me enviou, insolitamente, da rua Senador Dantas, no Centro do Rio, para o litoral de Mangaratiba só ele mesmo pode responder. Como não tenho o telefone do destino e muito menos o fax de Deus...vou me sujeitar a esta viagem fantástica. Até porque não tem outra saída mesmo.

Pêra ê! Isso aqui não é musica baiana, não ! É outono no Rio, estou em 1991! Por que, então, me encontro a poucas horas do ano 2000, às barbas de um cão desnutrido, praticamente um retirante etíope que deve ter visto comida pela última vez somente no início do segundo milênio?

Apesar da situação inédita e desconcertante, tive sensibilidade suficiente para enxergar nos olhos daquele animal um grau elevado de compaixão, antes de toda a sua desvalia nutricional. O coitado era pele e osso. Se fosse gente, provavelmente este cachorro, um excluído no mundo globalizado, estaria pendurado em cartões de crédito e cheque especial — furado há um bom tempo.

O dado mais interessante nesse meu surto, que prefiro chamar de sincope traumático-infantil, foi o seguinte:

Se, por um lado, eu plainava à frente de um cão faminto e miserável, mas rico em compaixão; por outro, via um homem com quase quarenta anos que parecia esperar alguém.

Diferente do “canino vidente”, o homem me parecia ansioso; quem sabe com problemas análogos ao do desvalido animal que salivava e babava enquanto o preocupado homem comia igual uma draga, sem se dar conta daquele cachorro que enxergava somente duas coisas: o invisível e o prato de comida do quarentão preocupado.

Longe de ser um Deus, mas, por incrível que possa parecer, encontrava-me num estado de onisciência impressionante porque tais coisas não têm absolutamente nada a ver comigo.

Ainda que estivesse de costas, vi bundas gostosas e adolescentes ávidas por uma aventura antes que o ano velho terminasse.

— Cadê a barca? Cadê a barca?

Era isso que o homem pensava, ao passo que comia e olhava o mar escuro e cheio de barcos piscando na maré de Mangaratiba. Ele era incapaz de virar a sua cabeça e perceber a fome cruel que consumia o já citado clarividente do mundo animal.

A noite já tinha caído, e o destino, mascarado no vento fresco local, me empurrou para mais perto destes dois personagens do futuro.

Odiei esta aproximação até a última instância!

Fiquei exatamente entre os dois e tive o desprazer de sentir um terrível cheiro da batata fria feita com óleo de amendoim reaproveitado em bolinhos de bacalhau. Como se fosse pouco, escutei, aos gritos, uma mulher histérica repetindo:

— Vem cá macaco! Vem cá desinfeliz! Vem senão você não come hoje!

Nem precisei olhar para trás. Era uma mulher gorda, um gênero de “pneu orca”, cuja abundante gordura era circunscrita por um lindíssimo modelito: pequeninas sandálias de dedo em unhas quebradas e mal pintadas, um short amarelo gema e uma indescritível e apertada camisa de malha com a inscrição Feliz 2000 em letras prateadas com purpurina metálica.

Esta incrível visão poderia ser vista até por um cego no escuro, tão ridícula e apavorante que era.

Talvez mais pelo pânico ou pelo absurdo?

Não duvidem: esta bóia multicolorida sobre duas patas era a dona do supracitado animal vidente.

Quanta injustiça — pensei. Tanta concentração de proteína, gula e egoísmo num único ser. Espaço realmente não lhe faltava para agregar tanta estupidez.

— Vem cá macaco desgraçado. Nojento, vem, senão você não come hoje.

Compreendei o porquê da desnutrição daquele condoído ser do mundo animal. E dispenso, por isso, maiores comentários a respeito.

— Não foge de mim que não adianta. Vem pra cá Amendoim!

Amendoim. Bastou aquela filha de uma bóia falar essa maldita palavra para que eclodisse uma incontrolável fúria dentro de mim.

Quando soube que o nome do amável cão era Amendoim, passei a odiá-lo. Quis matá-lo. Tive um surto de desprezo por ele, sua dona elefanta e o homem que só pensava: “Cadê a barca? Cadê a barca?”

Tive tanta raiva que caí no chão com o rosto virado para o mar, podendo ver, então, a barca iluminada que chegava da Ilha Grande.

Por algum motivo oculto, fui visualizado pelos três personagens. Eu estava de quatro, com os olhos vermelhos, chorosos e babando pelo canto esquerdo da boca mais do que um animal com sede.

Este infeliz deserto de tensões me exauriu de tal forma que não conseguia odiar ou amar qualquer coisa, inclusive aqueles três e toda a situação. Me tornei o nada diante do absurdo que era mais real e concreto que qualquer coisa já presenciada por mim em todos esses anos de vida.

Nada mais me espantava. Ao contrário, a minha trina fantástica desfez-se, apavorada, diante do incompreensível. A betoneira proteinada foi-se, nervosa, porém não menos magra, apenas um pouco enrubescida pelo insólito susto. A desgraçada suou, mas seu peso continuou inalterado. Sem parar de grunir e chorar, o cão baixou as orelhas, meteu o rabo entre as pernas e seguiu caminho com o seu carrasco de geladeira. O homem achou impossível continuar comendo naquele lugar mal assombrado e pediu a conta. Em seguida, caminhou perdido em direção do píer. Ele só pensava nas dívidas que tinha e na barca que se aproximava da marina com sua mulher e os dois filhos que voltavam de uma semana de férias.

— Onde foi que errei?

Esta pergunta incomodou simultaneamente a mim e o tal homem. Por quê? Que falha existencial aquele desgraçado sem compaixão e eu poderíamos ter cometido a ponto de sermos inquiridos pela mesmo coisa? Eu aqui, não sei onde, e ele lá, no mundo que também é o meu.

Os três ainda olharam para trás e em viram, de pé, dissipando-se no ar, misturado a poeira do chão. Minha imagem desapareceu diante deles como uma visão bíblica, mas sem conteúdo e cheia de interrogações e pavor.

— A barca chegou — pensou o homem.

Acho que a minha estada por aqui também já chegou...ao fim.

Estando no futuro, me pergunto:

Será que terei um?

Nenhum comentário:

Postar um comentário