sábado, 1 de agosto de 2009


Parte IV - O Eugênio da garrafa

unTroglodita


Esta história se perde nos anais do tempo...

Num país de dimensões continentais, onde a propaganda eleitoral era gratuita, mas o serviço militar e o voto eram obrigatórios, viveu um homem fantástico, o mais hábil e inescrupuloso político já visto na vida pública daquela grande nação. Seu talento para a perfídia e o maquiavelismo era tão assombroso que nutria a admiração e o respeito dos mais ferrenhos adversários. Até os homens de bem veneravam aquele arquiteto maior do ilícito. O homem era o diabo. Seu nome: deputado Eugênio Callado Netto; ou, como era conhecido nos bastidores políticos, Eugênio “o gênio”, pois era capaz de realizar verdadeiros milagres políticos nas condições mais adversas. Não existia cartola que o gênio de Eugênio não tirasse um coelho — nem que fosse uma cutia caiada de branco e alvejada de sem-vergonhice.

No entanto, o seu imbatível reinado de impunidade estava chegando ao fim. Depois de monopolizar e manipular sem um pingo de escrúpulo a política nacional durante décadas, seu juízo final já podia ser visto nos horizontes da quimera.

O deputado tinha um fraco que ele costumava dizer — nas alcovas — que era o seu forte: mulher. Por elas, Eugênio despendia rios de dinheiro, o que não era problema para este insuperável mestre da intriga.

Mas foi numa dessas... que a casa caiu.

Era de domínio público o horror que Eugênio nutria pelos insetos de uma maneira geral, especialmente pelas baratas. Não é que em uma de suas empreitadas amorosas, num luxuoso motel, ele não fez o maior escândalo porque se deparou com uma barata voadora saída da banheira, onde ele se encontrava com três mulheres num licencioso bacanal! O homem saiu nu no meio da rua e foi fotografado pelos paparazzi de plantão. No mesmo dia, em edição extraordinária, os noticiários de todo o país diziam: Deputado Eu-gênio Callado Netto é flagrado com seu assessor, o Cláudio Baratta, num motel.

Já não dava mais para esvaziar o fato e retroceder com esta nota mentirosa, injusta. Ninguém podia acreditar, nem as grandes bichas. O maior macho de plantão da república era frutinha.

— E logo com o seu secretário; quem diria, hem? Medo de barata? Que nada!
— Isso porque ele era “Callado”; se o Eugênio Netto é assim...imagina só o avô!

Este foi o diálogo entre os dois maiores opositores do deputado. Naquele tempo, ser larápio não bastava, tinha que ser um gênio, e Eugênio era um! Mas toda a sua inteligência e influência ($$$$) não foram suficientes para abafar aquele escândalo nacional.

Sua vida familiar e a longa carreira política intocável foram arruinadas do dia para a noite. Como o fato ocorreu antes do carnaval, o “escândalo da Baratta” foi o símbolo maior do carnaval gay naquele ano que acolheu o deputado como expressão maior do movimento nos dias de folia.

— Que desgraça! Que decadência! Ser achincalhado como um veado ladrão em plena folia de rei. É o carnaval que a oposição queria.

Assim Eugênio falava sozinho num bar, onde estava arruinado, deprimido e bêbado.

— Meu Deus — quem diria!, pois o Eugênio era um ateu convicto — qual a melhor saída? Nem me matar eu posso porque o meu assessor, o Baratta, um homem íntegro e familiar, se suicidou. Se eu me matar agora, aí é que falarão mal de mim: vão dizer que foi um pacto mortal entre as duas bichas apaixonadas. É o fim. Não posso viver em paz e muito menos morrer tranqüilo.

Depreciado e humilhado, Eugênio bebeu até não poder mais; até porque o poder..., Eugênio não possuía mais. Ele deprimiu tanto, mas tanto que sentiu esvair-se de toda a sua auto-estima. Sucumbiu a ponto de perder o sentido de identidade. Debruçado no balcão do bar, quase caindo em cima da garrafa, o falido político perguntou a si mes-mo:

— Quem sou eu?

E respondeu.

— O gênio.

Esta foi, finalmente, sua maldição: o deputado Eugênio “gênio” Callado Netto perdeu o seu ego, o eu. Ele tornou-se imortal, um gênio, praticamente um Deus. Apoiando-se nos dois braços, bêbado e olhando para o fundo da garrafa vazia, ele atingiu um nível depressivo tão intenso que encolheu e caiu no fundo da garrafa.

O garçom, bichinha, ao ver vazio o local onde estava o deputado, nem pensou, pegou a garrafa, fechou e guardou-a como um símbolo fálico e masturbatório de idolatria gay.

— Nooossa! A garrafa do “Eugênio Baratta” é minha. É a glóóóória — falava or-gulhosa, o garçom, bichinha afetada.

Não sabia ele que estava selando o destino e a eterna sentença do deputado ex-Eugênio; agora, o gênio.

A linda garrafa, onde ficou aprisionado, só tinha beleza: a bebida era a pior coisa já produzida sobre a face da Terra. Corria um comentário entre os bebuns que aquela bebida era tão ruim que chegava a ser usada como inseticida — contra baratas.

Como o mal do deputado foi o Baratta (ou a barata), esse drinque vagabundo o fez dormir e hibernar durante séculos e séculos em lugar ignorado até que um dia...

— Guiaaarrafieiro, guiaaarrafieiro, comprooo i viendo jornaaais.

Bem ao longe, numa rua moderna e muito arborizada, vinha cantando um garrafeiro que acordou, após séculos, o adormecido e amaldiçoado deputado Eugênio “gênio” Callado Netto.

Como de costume, o ambulante abriu o coletor comunitário de garrafas para a devida reciclagem. Olhando para o painel flutuante de luz ondular, ele piscou os seus olhos uma vez e acionou, assim, a limpeza solar seca das garrafas. Ao concluir a assepsia do material coletado, o experiente homem se enamorou de uma das garrafas. Ele então pegou-a com a sua velha boina marrom e abriu a secular casa do Eugênio.

Uma profusão de feixes de luz vermelha metálica saíram da garrafa e deram forma, após um longo confinamento, ao mestre do ilícito.

O garrafeiro não se mexeu, e muito menos se espantou diante da pirotecnia que fez surgir o deputado, que não perdeu tempo.

— Meu simpático senhor, olha aqui, eu sou um gênio; ou melhor, um homem amaldiçoado.

— Quem? Eugênio?
— Não, não! Somente um gênio que para voltar a ser humano precisa lhe atender um pedido. Compreende?
— Sei — respondeu com desdém.
— Homem, eu quero a minha liberdade. Peça o que quiser: mulher, dinheiro, poder e todas as riquezas que eu lhe atenderei.
— Sei — continuou indiferente.

O gênio Eugênio se irritou.

— Sei, sei! O que você sabe tanto, hem? Não gosta de dinheiro? Não tem fascínio pelo poder e o que ele pode lhe proporcionar? Sou um político e sei muito bem o que significa um homem investido com as benesses nababescas e babilônicas do poder. E mulher, também não gosta?

Sem saber, o velho garrafeiro estava preste a finalizar o suplício do político engarrafado.

— Olha, seu gênio, dinheiro...eu tenho, poder...não necessito.
— O quê? Você quer trabalhar o resto da vida como um garrafeiro, seu carcamano imbecil?

O sábio garrafeiro ficou indignado, insultado com as palavras do gênio.

— Seu gênio, não sei quanto tempo o senhor ficou preso em sua garrafa, mas hoje, em 2875, não precisamos mais destas oferendas e paparicos; e muito menos de políticos, ainda mais com o seu perfil.
— Como? 2875! Quer dizer que eu fiquei quase mil anos preso? Nem o diabo ficou tanto tempo no inferno. Você...

O velho garrafeiro era um sábio, e logo interrompeu o gênio revoltado.

— Bem, meu pobre diabo, vou te dar uma chance. Quero que você me conceda um pedido que se realize instantaneamente, tudo bem?
— É lógico, é só pedir — respondeu ardilosamente com a cabeça baixa e o olhar de cachorro traiçoeiro para cima.
— Eu quero que você se transforme numa barata.
— Nããão! — gritou desesperado.

Mas já era tarde. O deputado Eugênio “ortóptero onívoro” Callado Netto, ex-gênio, se transmutou no seu próprio escândalo.

Friamente, o garrafeiro pisou em cima do ex-gênio, agora barata, e matou o mesmo, ou a mesma, dizendo:

— A humanidade não precisa de um ser humano como você, seja no passado, no presente e muito menos no meu tempo, criatura desprezível. Quer saber mais? Hoje é quarta-feira de cinzas, além do mais, eu sou muito bem casado.

Ele esfregou o sapato no chão para limpá-lo e voltou ao seu trabalho através daquele bairro ecologicamente perfeito.

Minutos depois, passou um rato (um espécime raro naqueles dias) e comeu os despojos do ex-tudo: o Eugênio, ex-gênio tinha virado comida de roedor.

Não havia mais Eugênio, gênio ou barata, somente um rato bem nutrido e satisfeito.

Para quem sempre foi um rato em torno do erário, terminar como barata e ração quase mil anos depois...não é nada injusto.

— Guiaaarrafieiro, guiaaarrafieiro, comprooo i viendo jornaaais.

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