sábado, 1 de agosto de 2009


Parte VI - Rapto eletrônico

unTroglodita


“Mas que sujeitinho chato! É Por isso que os pais não o suportavam. Tem mais é que pagar caro e fazer cinqüenta anos de análise, filho-da-puta. Vai amolar o Freud, porra!”

Todo final de mês era a mesma rotina.

À medida que os pacientes pagavam os honorários pelas sessões, a Dra. Tatiana fazia uma crítica mental sobre a enfadonha problemática que cada um tinha. Adolescentes, idosos ou adultos, fossem homens ou mulheres, nenhum era poupado. Ela simplesmente não tolerava aquele bando de desajustados, apenas os suportava em função dos elevados preços de suas sessões, pois não se sentir afeiçoada por seus pacientes e suas loucuras era uma coisa, mas não gostar de dinheiro e da conseqüente renda que eles lhe proporcionavam, era a pior de todas as insanidades.

A laureada psicanalista tinha construído uma carreira acadêmica mais que respeitável como membro fundador, conselheira e mestre da Sociedade Psicanalítica do CU. O CU nada mais era do que um Centro Universitário referência, onde se formava a elite que cuidaria das ossadas psíquicas e indesejáveis da sociedade bem remunerada e, portanto, apta a despender caminhões de dinheiro com os mestres da psique.

Além de toda esta augusta reputação, Tatiana possuía virtudes que toda mulher adoraria ter, mas que normalmente só podia mesmo é invejar: era culta, inteligentíssima, extremamente bonita, gostosa, atraente e...rica, muito rica. Apesar de todos estes dotes, a balzaquiana Dra. nunca teve um relacionamento sequer com homem algum. Digo homem porque esta era a sua praia. Ela detestava as mulheres de uma forma geral, mas abominava as prostitutas com um fervor quase nazista.

A Dra. Tatiana seria capaz de atender um pobre — contanto que o mesmo pagasse —, mas jamais teria uma prostituta ou qualquer garota de programa como sua cliente.

No fundo, no fundo, esse “enigma psicanalítico” odiava frontalmente duas coisas neste mundo: pobre e prostituta. Quanto a Deus e a religiosidade humana..., ela não dava a mínima.

— Quanto mais deuses e religiões..., melhor para mim! É mais dinheiro que sobra. Meu paraíso é aqui e agora. O céu e suas recompensas, Deus e os anjos são migalhas para os miseráveis que tem mais é que se foderem na vida. Não sei se o inferno ou a vida após a morte existe, mas se existe algo assim, gostaria muito que todas as prostitutas e pobres fossem trancados e acorrentados lá para sempre.

Duro pensar deste jeito, não? Que nada! Tatiana levava tudo isso no bico, com a maior facilidade e alegria do mundo.

A única coisa realmente estranha era o fato dela não ter tido nenhum namoro firme até a presente data. O tempo já tinha passado, Tatiana estava com trinta e cinco e ainda não tinha tido filhos. Por quê?

O dia cinco ia se aproximando, e a Dra. Tatiana começava a descascar o seu rosário de críticas. Dinheiro vivo, cheque, até dólar ela aceitava. A única coisa que ela realmente não aceitava e suportava eram os seus pacientes. Malucos, neuróticos, psicóticos, todos procurava o suntuoso consultório da Dra. Tatiana, na esperança de darem um rumo na vida. A despeito de toda a repulsão pelo seu séqüito de desajustados, a fama e a excelência profissional dela eram conhecidas e respeitadas até no estrangeiro, onde ela também ocupava posições de destaque, fosse como professora, consultora ou laureada pa-lestrante de congressos que lhe rendiam fábulas financeiras invejáveis.

Como pode uma mulher tão bonita, atraente e gostosa não ter uma paquera sequer? Não sei! Mas que era estranho, ah, isso era! Homossexualismo ela não curtia, pois, como já disse, Tatiana não suportava as suas congêneres, ainda mais se fossem putas.

Bem, voltemos ao dia cinco porque este era o dia limite estipulado para o pagamento dos honorários da ilustre Dra. Tatiana.

Certa ocasião, um paciente perguntou se não poderia pagar no dia seguinte. Ela então disse para o mesmo aguardar. Sabe que a Dra. mandou chamar a polícia para prender o seu paciente?

Pois era impreterivelmente neste dia, no último horário da sexta-feira, de sua disputadíssima agenda, que Eduardo Cabul, o Edy Piano, pagava a Dra. Tatiana.

Detalhe estranho. Piano sempre pagava a Dra. do mesmo modo: quatrocentos reais divididos em três notas de cem, e o restante em notas de dez, dentro de um envelope marfim escuro, de gramatura pesada e ligeiramente áspero. Já tinham se passados três anos e meio e o Piano não mudava uma virgula neste seu inquebrantável ritual — que fazia parte de sua psicose.

Sabe o mais estranho? Este era o único paciente ao qual Tatiana não fazia uma única crítica durante o pagamento dos seus honorários. Ela tinha um medo indescritível do Edy Piano: um caso que lhe foi indicado por um medalhão do CU. Não tendo como recusar, ela terminou aceitando uma sinuca de bico, da qual não sabia sair de jeito algum, apesar de sua grande experiência clínica — ou cínica — com todo tipo de maluco.

Ah, antes de começar o seu período de análise, Piano ocupava o cargo de analista financeiro num dos mais prestigiosos bancos do mercado europeu. No entanto, para sorte dele e azar do mercado financeiro, um dos seus mais notáveis passatempos era pôr em prática os seus geniais dons de racker.

Ao contrário de Tatiana, Piano odiava o dinheiro mais do que a sua própria profissão de economista e analista financeiro. Ele tinha um desprezo tão intenso pelo dinheiro que terminou lesando em bilhões de dólares o mercado acionário de dois continentes.

Embora ela não deixasse transparecer, Piano sentia que a Dra. Tatiana lhe temia mais do que tudo neste mundo. E ele, como bom sádico sociopata, adorava a situação, tanto que perpetuava há mais de três anos as torturantes sessões de análise: a tábua de salvação que o livrou de uns bons anos numa gaiola penitenciária.

Acho que Piano foi a única pessoa que realmente conheceu a Dra. Tatiana: uma mulher medíocre, fria, sem compaixão, sem um pingo de criatividade.

Intuitivo como nenhum outro, Piano ficou estarrecido quando percebeu que a Dra. era mais fria e insensível do que ele mesmo.

— Nossa, como pode existir alguém mais indiferente e patologicamente mais sem um pingo de compaixão do que eu? Isso não é gente, isso não pode ser humano!

A fobia era tão doida que ela se quer gastava os honorários que recebia de Edy Piano: sem mesmo abrir o envelope, Tatiana queimava os quatrocentos reais todo final de mês, tal qual um exorcismo. É lógico que uma criatura tão infeliz e ressentida com a vida como esta não poderia saber o significado da palavra caridade. Ela preferia incinerar os seus medos do que ajudar um necessitado.

Não sabendo identificar o porquê deste medo devastador, Tatiana procurava tratar este caso clínico com todo respeito porque sabia que o seu sombrio paciente era um tipo altamente intuitivo: ele vasculhava como ninguém as indignidades humanas escondidas sob as aparências.

Três anos e meio de análise, e Piano sempre “passava o tempo” nas sessões falando amenidades e comendo as suas paçocas — de amendoim...

Neste espaço de tempo, aconteceu a coisa que Tatiana mais pediria a Deus, caso ela fosse pobre e filha-da-puta: seu paciente fantasma, o Piano, faltou exatamente no dia cinco, o dia do pagamento. Em todo este tempo, ele nunca tinha se atrasado ou faltado a uma sessão sequer.

A Dra. ficou esfuziante — mas por pouco tempo!

Quando ela se deu conta, percebeu que não tinha um tostão. E se existia algo que a deixava ansiosa, nervosa — além do Piano — era ficar sem um qualquer na bolsa.

Mas se existia algo que ela tinha mais medo na vida do que o próprio Piano, esta coisa era um caixa eletrônico, destes que a gente vai e pega um dinheiro — quanto tem a sorte de ter! Ora, sorte, ela tinha. Dinheiro? Muito mais! A única coisa que Tatiana realmente não tinha era a coragem de entrar num caixa eletrônico para sacar dinheiro. O pior de tudo é que a Dra. tinha ficado tão feliz com a ausência do seu paciente que resolveu dispensar mais cedo a sua escrava, a secretária Bete, de modo que esta pudesse aprovei-tar melhor o seu final de semana, cruzando com pobres e negros de um modo geral.

Como uma pessoa que gostava tanto de dinheiro poderia ter tamanho medo de um simples caixa eletrônico? Essa fobia nem mesmo Freud explicaria.

O dinheiro era a única coisa com a qual a Dra. Tatiana realmente se relacionava. Pacientes, secretária, pobres, mulheres e putas não passavam de simples escória. Pela primeira vez, então, Tatiana lamentou a falta do Piano.

— Porra, aquele filho-da-puta só paga em dinheiro. Exatamente hoje que eu não tenho nada, ele me falta à sessão depois de todo esse tempo. É muita sacanagem!

Tatiana começou a perceber que não teria outra saída: deveria enfrentar os seus fantasmas e entrar num caixa eletrônico, caso quisesse ter algum dinheiro na carteira, para se sentir, então, mais gente.

Por quê tanto medo? Não sei, mas era uma fobia praticamente psicogenética.

Ela foi, portanto, em direção ao tal caixa eletrônico, sem saber que estava selando o seu destino para sempre. Pela primeira vez em toda a sua sórdida e avarenta existência, a doutora se encaminhava para o seu verdadeiro propósito.

Qualquer lugar onde houvesse um caixa eletrônico, seria uma região inóspita para Tatiana. Mas o lugar onde ela foi era perfeitamente normal: a cabeça dela é que ainda não estava sob o regime da sanidade.

Respirando bem fundo por todos os poros, ela se dirigiu ao caixa eletrônico próximo ao seu consultório. Já era noite, coisa aí em torno de 20:45. A Dra. Estava impecável e, como sempre, deslumbrante, uma delícia. Pra seu espanto, ao chegar no shopping, ela percebeu que não havia uma viva alma, o que a deixou ainda mais nervosa.

— Calma, eu preciso ter calma e dinheiro! Dinheiro para ter calma e calma para ter o dinheiro.

A mulher estava transtornada ante a possibilidade de visitar — a contragosto — os próprios medos.

Tatiana finalmente entrou no caixa, fechou a porta e rezou para o Tio Patinhas. Ela olhou a sua volta e...tudo transcorria na maior calma. Mas a calma era tanta, que a infeliz tinha esquecido a senha. Duas tentativas erradas foram feitas: ela só teria mais uma tentativa.

— Bingo! Entrou!

A alegria retornou ao seu semblante, mas esse momento de felicidade seria passageiro.

A doutora digitou um saque de R$ 400,00. Ela estranhou o fato da máquina emitir uma cédula de cada vez. Veio, então, uma nota de cem, uma segunda de cem, uma terceira de cem e o restante em cédulas dez. Extraordinariamente a máquina começou a tossir igualzinho ao seu temido paciente, o Edy Piano. A mulher ficou multicolorida de medo! Parecia uma arara num filme de terror.

Isso era só o começo.

Quando a máquina parou com seu pigarro digital, Tatiana tentou fugir, mas era tarde: a porta se trancou, a cabine escureceu e tudo ficou mais claro para quem compreende as vielas do destino:

— Meu Deus!

Como pode um espírito desgraçado e ateu como este pronunciar o nome de Deus em vão? Dizem que todos são filhos de Deus. Não é possível que esta filha-da-puta tam-bém o fosse. Seria muita sacanagem ter uma escrota desta como irmã, não acha?

Pois bem, a máquina parou de tossir, mas em seguida, tal qual uma ejaculação, o caixa começou a expelir sêmen misturado com notas de dez reais. Tatiana ficou toda coberta com essa mistura. Ela sequer conseguia gritar porque o pânico a sufocou. Lentamente a máquina foi parando de ejacular aquela mistura que banhou a psicanalista, até que finalmente parou.

Mas isso tudo foi apenas um prelúdio.

Um feixe de luz amarela sugou a Dra. Tatiana para o interior do monitor do caixa eletrônico, onde ela foi virtualmente violentada por cédulas e moedas. Políticos, escritores, cientistas, até o Pedro Álvares Cabral e o Mico-Leão mandaram ver na Dra, que depois de passar na mão de muita gente ilustre foi devolvida ao nosso mundo com todas as alterações necessárias à realização do seu mais genuíno destino.

Assim como o sêmen e as notas de dez reais que foram expelidas ejaculatoriamente pela boca do caixa eletrônico, a Dra. Tatiana foi repelida do mundo digital e de toda aquela sevícia sexual-financeira sob a forma de um extrato bancário que ao cair no chão se queimou, virou cinzas, para em seguida se transformar novamente na mesma Dra. Tatia-na.

A mesma? Acho difícil!

Na cabeça de Tatiana, esta interminável experiência salvadora teria durado pelo menos uma hora, certo? Antes de se queimar, o extrato bancário marcava 20:45:50.

No dia seguinte, após ser encontrada totalmente desarrumada, suja e descabelada, Tatiana foi levada para um pronto-socorro em profundo estado de choque. Feito o exame de corpo delito, alguns fatos estarreceram os médicos. Foram encontrados muitos extratos e saldos bancários juntamente com moedas e cédulas de real no interior de sua vagina. No entanto, o seu cu tinha tanto dinheiro enfiado que mais parecia um cofre de banco.

Um outro detalhe espantou os médicos ao ponto deles pensarem que ela tenha sido brutalmente torturada, além de estuprada. Tatiana trazia duas marcas feitas a ferro e fogo: na parte interior do seu antebraço esquerdo, o número de sua conta bancária e no braço direito simplesmente...R$ 400,00!

Mais um detalhe: Dra. Tatiana, 35, era virgem.

Os meses se passaram, o consultório foi fechado, no entanto, não houve a necessidade de maiores esclarecimentos psicanalíticos para levantar esta mulher e recolocá-la na rotina do dia-a-dia.

Mais alguns meses se passaram e Tatiana já estava absolutamente recuperada da traumática, mas salvadora situação.

Pela primeira vez em toda sua vida ela estava se relacionando de verdade. Tatiana tinha abandonado a sua gloriosa carreira de psicanalista para se entregar, de corpo e alma, a vida de prostituta no mais baixo meretrício da cidade.

Como puta, Tatiana passou a ser a alegria de todos os tabaréus, paraíbas, negros, porteiros e faxineiros. Ela tinha se transmutado na sopa dos pobres. No entanto, não eram os seus lindos olhos verdes e seus pequenos e deliciosos seios que a tornavam uma puta especial: seu corpo era pão; um raro alimento que os famintos nunca tinham provado por tão pouco em toda uma existência cercada unicamente de miséria e privação. Não era liquidação! O corpo de Tatiana era unção e seu amor..., conversão.

Sim! Ela sabia amar um homem como nenhuma outra mulher. Isso não era profissão. Era dom.

Ela cobrava, sim, mas desta vez oferecia algo de muito valor em troca.

Com profunda entrega e compreensão religiosa, ela tinha se tornado uma devota de “ciganinha”, uma espécie de pombajira a qual Tatiana sempre tinha o cuidado de agradar com cigarros dados por seus homens e muita bebida ordinária. Mas se tinha uma coisa que “Tatiana ciganinha” gostava, essa coisa era uma boa sidra. No entanto, pra prestar, esta sidra deveria ser da mais barata e vagabunda.

Quinze anos de ostentação, luxo e muita atividade rapineira na psicanálise não se comparavam a riqueza que agora cercava Tatiana ciganinha. Perfumes vagabundos, bijuterias de esquina e roupas simples de uma puta pobre não conseguiam esconder a beleza e a felicidade que bulinava sua vida de ponta a ponta.

Mesmo nas segundas-feiras, dia da semana no qual ela nunca trabalhava, pois tinha que servir ao santo no “terreiro do caboclo Ferreirinha do lote 5”, Tatiana estava tranquila, feliz da vida, na porta do bagulhão, comendo pipoca, paçoca ou amendoim.

Ela não via a hora do dia passar para voltar a ser feliz com seus homens, de terça a domingo. Tudo com hora marcada.

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