sábado, 1 de agosto de 2009


Quadrilátero - Uma realidade urbana

Parte I - Surto patético-amendoínico – dormindo na realidade

(Para Mario Derly Baglione in memorian, 1933-2002)

"Qualquer ficção com a mera coincidência, não é pura realidade..."

unTroglodita


Tudo o que vou relatar é a mais pura verdade. É exatamente isso o que mais me espanta: a veracidade de todos os fatos que serão relatados. Existem testemunhas, mas no fundo, no fundo, estou me lixando para as testemunhas; até porque isso aqui não é casamento. Danem-se todos os registros e cartórios!

O que realmente importa é que aconteceram coisas que até então nunca tinham ocorrido em minha vida. Tudo de uma forma inusitada, insólita. É mistério!

Eu era um homem de trinta e sete anos, com aparência de trinta; simples e, por isso, como todo o ser humano, bastante complicado. Não tenho religião, embora meio a contragosto, acredite em Deus. Peno muito por não senti-lo; ou, pelo menos, me sinto muito incomodado com o fato de não ter consciência de algo que gostaria de experimentar, mas não faço a mínima idéia do que venha a ser. É uma espécie de saudade do futuro, uma lembrança de algo que não me recordo. Coisa meio complicada para um homem sem religião, não acha?

Não faço a mínima idéia do porquê, mas no dia em que estas inexplicáveis experiências me aconteceram, passei a pensar muito em Deus. Pensei sem temor, refleti sem alegria. Unicamente isso. Apenas refleti.

Em meados de abril deste ano, fazia um belo e ensolarado dia, bem típico do outono carioca, quando o Sol é fraco e pouco incomoda. Quem conhece bem o Rio, sabe o quanto o Sol desta época é gostoso, principalmente para ir à praia. Ainda mais eu que detesto ficar com a pele ardendo por causa do excesso solar. Provavelmente devo ter sido camelo em alguma encarnação recente.

Na hora do almoço, a minha namorada estérica e mimada pelo pai, a Carla, me ligou para que fossemos ao Centro acompanhar o conserto do seu computador. Como trabalho com informática, terminei lhe dando uma mãozinha, pois ela não entende absolu-tamente nada de computadores.

A assistência técnica era ali na rua Senador Dantas. Tudo deu certo, não houve problema algum. Computador e impressora seriam entregues em uma semana. Mesmo não compreendendo o que tinha sido explicado sobre o conserto, ela entendeu que o seu micro ficaria novinho, pronto para o seu trabalho diário, Internet e etc.

— Meu amooooor que bom! Quer dizer que semana que vem posso voltar a trabalhar nos meus projetos, textos e desenhos?
— Se eles entregarem no prazo, o que acho um pouco difícil, até te ajudo com o trabalho acumulado, inclusive na digitação.

Descemos a rua Senador Dantas, em direção a Cinelândia, onde o carro estava estacionado. Carla brincava comigo:

— Drigo, me lembrei que você atualmente parece uma mulher grávida. Anda cheio de desejo, com vontade de comer aquela porcaria de sanduíche anunciado na televisão. Lembra-se?
— Olhos azuis, isto é um convite? Se for, exigirei um sundae com bastante castanha.

Pode parecer ridículo, mas eu realmente estava com a maior vontade de provar aquele sanduíche anunciado pelo McDonald, o McFish, que Carla carinhosamente chamava de porcaria para não me ofender.

Se for possível, faça uma forcinha e tente me compreender: olhos azuis e eu detestamos qualquer tipo de fast food, embora não sejamos naturalistas, nudistas ou ruralistas.

Como adorávamos um programa de índio, fomos ao McDonald do Centro e fizemos a nossa catarse antialimentar. Bata-frita, milk-shake, hamburguer e, logicamente, o imprescindível: a porcaria do peixe americano e um sundae de morango com bastante castanha — e vielas traiçoeiras.

Foi um verdadeiro festival de colesterol, saturado de propaganda e mentira. Eram dois idiotas comendo, alimentando o insipiente sucesso de alguns publicitários, bem como a nossa própria vacuidade.

Foi quando provei o tão anunciado McFish e disse:

— Olha, este maldito peixe com pão é uma das piores coisas que já provei desde a Kaiser Bock. E eu paguei por essa miséria do consumismo ocidental!

Até hoje ainda penso: por que não fiquei calado? Bastou esta infeliz frase para que iniciássemos a nossa primeira e última briga.

— Queridinho, quem pagou essa parada fui eu, tá?
— Tudo bem, tudo bem, mas a vítima fui eu, concorda?

O silêncio nos fez companhia. Carla me observava com os seus felinos olhos pretos, cheios de indignação. Com toda a razão, ela apenas disse com o maior carinho, tentando contemporanizar:

— Drigo, você não vai tomar o seu sundae com castanhas?

Quem diria, a nossa relação estava não por um fio, mas sim por um sundae com bastante castanha. E olha que isso era o de menos. O pior do pesadelo ainda estava por vir.

Gostaria de frisar que não sou paranóico, mas após tomar o meu sundae inundado de castanhas considerei a absurda possibilidade que em nosso mundo globalizado, a traição seja uma cobertura de sorvete.

Fitei o meu sundae e, em seguida, olhei para os olhos de Carla que de um instante para o outro passaram de um cinza tempestade para duas bolas de fogo. Em ter que falar mais uma besteira e me envenenar, optei pelo sacro ofício do consumo: sacrifiquei-me comendo aquele sundae de morango. E realmente era um sacrifício, pois não sabia o que o destino me reservava.

No fundo, no fundo, o tal sundae era a própria traição em cobertura que falei anteriormente. Hoje, na mais perfeita sanidade, entendo aquele inocente sundae como mais um tipo de peixe americano, um McFish gelado do inconsciente.

Sem imaginar o que me esperava, deu a primeira colherada no sundae. Enchi a colher de modo que viesse com bastante castanha. A colher estava tão cheia que cheguei a derramar na mesa um pouco do sorvete, da calda e da maldita cobertura de castanha. Enquanto mastigava e degustava este Cavalo-de-Tróia da gastronomia norte-americana, olhei para Carla: ela já estava com uns óculos espelhado.

Foi através deles que vi a imagem de minha danação outonal.

Vejam só, quando senti o verdadeiro paladar da cobertura de castanhas, tive um tipo de transfiguração às avessas.

A cobertura não era de castanha, mas sim de amendoim!

Me senti traído pelo mundo encantado do consumo. Me enfureci. Sabe por quê? Vou explicar.

Quando era pequenininho, minha mãe me alfabetizou, à força, através dos métodos mais nazistas que poderiam existir: com gibis do Pateta. Portanto, aprendi a ler e a escrever com revistinhas do Pateta, o mesmo que se transformava no Super Pateta quando comia aqueles malditos e torturantes amendoins.

O amendoim tinha se tornado um trauma para mim! Até a rima é feia.

E desde essa época, nunca mais pude comer os amaldiçoados amendoins. Todas às vezes que os comi acidentalmente, tive experiências extáticas, o que terminava me deixando profundamente constrangido e deprimido. Bastava comer alguns amendoins para que, por exemplo, começasse a ter visões, profetizar e até a dar consultas como um verdadeiro pai-de-santo ou algo semelhante.

A situação é tragicômica. Vou dar dois exemplos.

Certa vez numa festa, por pura desatenção, comi alguns enquanto tomava outras doses de uísque. Pronto, baixou o santo, ou sei lá bem o que, mas eu, ou melhor, ele, a entidade, começou a dar consultas em meio aos convidados.

Dizem que foi um sucesso, pelo menos em parte, pois eu era um convidado e os anfitriões quiseram perguntar ao sensitivo algumas coisas. Involuntariamente, comecei a falar em voz alta sobre a infidelidade do casal anfitrião. Em verdade, a festa daqueles dois hipócritas era a mais deslavada comemoração de alguns anos de falsidade e muita infelicidade. Eram dois putos adúlteros.

O vidente de ocasião, agora um oráculo indesejável, terminou apanhando do casal infiel. Em seguida, por ordem expressa dos meus anfitriões, fui preso como charlatão e, chegando na delegacia, como se não bastasse o sacode que levei na festa, terminei apanhando mais um pouquinho. Sabe por quê? Eu, possuído pela entidade, um encosto que não me larga desde a infância, dei uma de José no calabouço faraônico, e danei a profetizei para os presos. Infelizmente, para mim e para os presos, os vaticínios não eram nada auspiciosos e o meu futuro desafortunado logo chegou.

Minha gente, eu entrei na porrada! Apanhei até dos presos que não se consultaram comigo, tamanha era a revolta na carceragem. O que me salvou é que na festa a entidade, ou sei lá que diabo era aquilo, cobrou pelas consultas. Os presos levaram toda a grana e me deixaram em paz, além de bem machucado.

Numa outra ocasião, num jogo do Flamengo, lá na Gávea, onde eu já tinha tomado algumas cervejas, comi, sem querer, a minha criptonita. Sabe o que me aconteceu desta vez? Meu amigo Novalgina disse que eu gritava, possuído pelo espírito de um picareta, em tom de pregação pelas arquibancadas lotadas:

— Olha aqui seus puto! Num sô Flamengo e quero mais é que vocês tudo se foda! Vascoooooooo! Oh, brincadeira não, seis vão levar um sacode do caralho hoje, sacô? Né goleada não, mas seis vão se foder na tabela. Hoje não tem Romário, não tem pênalti, não tem porra nenhuma. Seis vão perder, tá legal?

Olha, mas deu uma merda sem precedentes!

Como se não bastasse, o Novalgina disse que eu ainda cismei com um torcedor, um verdadeiro arquétipo rubro-negro. O cara era um animal, uma fortaleza de músculos afrobrasileira. Cheio de marra, fui encarando o negão.

— Aí negão!

O bom homem, vestindo uma camisa do Flamengo, estava concentrado no péssimo jogo e nos comentário do Canhotinha, o Gérson. Ele não deu a mínima, tinha mais o que fazer. Sequer me ouviu. Mas esta entidade sádica foi até ao pacato e calmo torcedor. E continuou:

— Aí negão! — batendo com força no ombro dele — Tá surdo? É contigo mermo!

O Novalgina, que esta altura já estava bem distante de mim, pois mesmo não sendo vidente já sabia o que me aconteceria, disse que eu caminhei para mais junto do negão, cheio de moral, montado na maior marra dizendo aos berros:

— Olha aqui o flamenguista. Num fui com a tua cara. E é o seguinte... tu é veado, tua mulher tá dando e o Flamengo vai levar um gol agora...

O meu amigo me contou que a última coisa que ele viu foi eu dando um tapa na orelha do negão, pois naquele momento realmente o Flamengo levou um gol e perdeu o jogo em casa, ficando em péssima situação na tabela.

No entanto, quem realmente ficou em péssima situação fui eu. Aliás, muito pior que a do Flamengo. Até hoje não tive como constatar se o negão era veada ou se a mulher dele era realmente adultera, mas que a mão dele com aquele radinho era pesada, ah isso era. O negão me enfiou a porrada.

Afirmo com absoluta certeza: nem todos os bifes juntos em toda a história da humanidade apanharam mais do que eu naquele apocalíptico dia. Apanhei de todo mundo. Apanhei da galera, apanhei da polícia, apanhei até da entidade e de um vascaíno, vejam só!

— Porra, Rodrigo, você até parece com aquela dito popular: você pode até não saber porque tá batendo, mas a sua mulher sempre sabe porque tá apanhando. Brincadeira, hem?

Era isso que o Novalgina me dizia no dia seguinte. Pior que ele tinha um pouco de ra-zão.

Só o fato de contar estas histórias me causam dores por todo o corpo, ainda mais que lembro de outras tantas.
De lá pra cá, me disciplinei e nunca mais comi os abomináveis e transcendentes amendoins.

Já tinham se passados anos, e nunca mais tinha colocado um na minha boca.

Creio que você agora já pode compreender melhor o meu pavor e indignação ao perceber que a cobertura do meu sundae de morango era de amendoim.

Carla não sabia nada a este respeito, muito menos das histórias. Poucos amigos sabiam a respeito desta minha sensibilidade ou alergia espiritual aos amendoins.

Ela simplesmente ficou me olhando de boca aberta, de certo pensando que estivesse vendo algum tipo de surto.

— Meu Deus! O que será desta vez? Vou apanhar de quem? Que merda eu direi para evocar a fúria de um indivíduo ou das massas? Que mal eu fiz, Jesus?

Levantei da mesa dizendo isso. Estava transtornando, gritando como nunca tinha gritado. O McDonald simplesmente parou. Acho que o Centro da cidade inteiro ouviu os meus berros e lamentos. Encarnei o terror e as pessoas me olhavam como se eu fosse um louco.

Não suportando a pressão e o medo do que poderia me acontecer, gritei ainda mais alto, quase tendo um colapso nervoso:

— Eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta!

A esta altura, Carla correu para fora do McDonalds. Ficou apavorada, pois nunca tinha me visto assim. Todos se distanciaram de mim.

Olha, minha fúria era tão intensa que nem a polícia ousou entrar no recinto.

Acho que naquele momento fiz um tipo de catarse, uma espécie de exorcismo sobre aqueles infelizes momentos em que minha mãe me obrigava a comer amendoins e ler em meus momentos de lazer — se é que eles existiam!

— Filinho, come amendoim — era apenas um saco cheio até a boca — para ficar forte e inteligente que nem o tio Super Pateta. Mas não se esqueça de ler estes trinta gibis antes de ir para a escola, pois de noite, antes da tabuada, você me vai ler todos eles novamente, lindinho — dizia minha mãe.

Não é que durante o meu desabafo emocional, estas cenas de minha infância desfilavam na minha consciência como um maldito e apavorante filme de terror. Eram as obscuras reminiscências que afloravam.

Minha crise estava chegando ao limite. O gosto de amendoim misturado com sorvete e calda de morango descia como uma cicuta pela minha garganta. Me senti como um Sócrates desavisado e sem prestígio algum. Cheguei a me imaginar derretendo como um sorvete ao Sol, cheio de moscas e meninos de rua em volta pisando e chutando para ficar com a casquinha.

Que visão mais trágica, parecia com um quadro do Dali. Nada! Aconteceu coisa bem pior.

Totalmente desnorteado, descabelado e suando, busquei Carla, mas só encontrei uma mulher assustada e, atrás dela, um bando de policiais mais assustados ainda.

— Carla, acredite, estou jurando, eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta! Eu não sou o Pateta!

Repetindo isto neuroticamente, caminhei na direção de Carla. A multidão que estava na porta correu para o meio da rua. Os policiais há muito já estavam atrás da patamo pedindo reforço urgente ao PINEL. Um deles até disse:

— Coitado, deve ser tricolor, botafoguense. Será que é do PT? Vai ver que é maluco, mesmo.

Ocupados e desocupados gritavam em uníssono:

— Ah, eu tô maluco. Ah, eu tô maluco. Ah, eu tô maluco.

Enquanto outros diziam:

— Uh, uh, vai morrer! uh, uh, vai morrer!

A porta da lanchonete já parecia à entrada do Maracanã na final de um campeonato. Só que ninguém queria entrar para assistir este jogo: a partida (sem retorno) de Um homem x O seu passado torturando o seu presente.

Atingi, então, o meu limite.

Minha voz podia ser escutada até pelos vereadores da Câmara que por não terem absolutamente nada para fazer da vida, vieram prestigiar a minha tragédia urbana.

— Gente, olha, me escutem pelo o amor de Deus. Sabe por que eu não sou maluco? Porque eu não sou o Pate...

Neste momento, de uma maneira surpreendente, algumas lâmpadas explodiram e houve um curto circuito que apagou as luzes de todo o Centro da cidade. O pânico entre as pessoas se tornou maior do que já era. Eu segurei a cabeça com as mãos e desmaiei, caindo no interior escuro da lanchonete. Assim como as lâmpadas, eu também apaguei. Meu fusível psicológico tinha sido queimado pelos efeitos da leguminosa. Pelo menos era isso que eu imaginava.

Acho que o grande curto circuito mesmo foi na minha cabeça.

Tombei, e, na queda, bati com a cabeça no chão. Mas foi bem mais do que um simples desmaio...

Desfalecido no meio do nada, mas próximo de coisa alguma, uma voz masculina, forte, dizia bem alto:

— Se você quer ter um futuro, olhe para o seu passado, agora. Ação!

Além de não saber se eu era personagem ou espectador, também não fazia a mínima idéia de quem era o diretor desta peça do destino...

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