segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Parte VI — Justítia

A sombra voadora deixou os domínios do Pollatan, em direção a uma região pantanosa, próxima alguns quilômetros dali, onde ninguém ia ou vivia, devido aos perigos inerente e conhecidos deste lugar inóspito, chamado Avala L.

Bem no meio deste inacessível pântano, cercado por uma densa floresta, havia um pequeno lago circular de águas fétidas, medindo cerca de uns 25 metros de diâmetro e povoado por perigosos répteis, cobras e serpentes marinhas. No centro deste, uma ilhota com um enorme e antiquíssimo monólito em forma de “L” (90)º que comportava uma única pessoa. Por ser tão grande, suas dimensões excediam, em muito, o próprio tamanho da ilhota, fazendo com que os horrendos habitantes do lago subissem nele, ora para descansar, ora para tomar banho de Sol ou devorar suas vítimas ou sacrifícios oferecidos pelos adeptos que ali celebravam os seus hediondos ritos de comprometimento e submissão absoluta às trevas.

Com o Sol a pino, sozinho e sem medo de espécie alguma, lá estava um dos mais bem guardados segredos da República do Sol Negro: duas vezes a cada mês, uma a meia-noite e outra ao meio-dia, Fanaspatic ia para lá fumar a flauta do paganiarã em cima do monólito sagrado, o IT2/5, cujo aparecimento remonta a própria fundação da seita do Sol Negro na Terra, em tempos perdidos — praticamente no mesmo período em que a Cúpula Sacerdotal tricula se estabeleceu entre nós.

Pouco se sabia a respeito da utilidade do IT2/5. Provavelmente ele seria um conversor de comunicação e criptografia quântica avançadíssimo que estabelecia o vínculo secreto da elite da seita, com os seus mentores alienígenas — o Mal Cósmico!

Além de uma origem incerta, a constituição material deste monumento, também era um mistério. Ele tinha a aparência de uma pedra muito antiga, mas na verdade não passava de uma liga metálica inexistente em nosso mundo.

Além disso, este material demoníaco só podia ser tocado e manipulado física e psiquicamente por aqueles que já haviam empenhado a própria alma a serviço do materialismo e da escuridão. Quem não tivesse esta vinculação espiritual, seria dilacerado instantaneamente pelas energias veiculadas por este engenho maligno. Portanto, raros eram os fiéis do Sol Negro que podiam se atrever a tamanha façanha.

Fanaspatic, como líder desta elite, possuía ainda um outro dom que o diferenciava dos demais membros graduados do seu grupo: ele consumiu o paganiarã, sem que fosse afetado pelos seus efeitos nefastos. Para se ter uma ideia da periculosidade desta droga, basta dizer que ela era mil vezes mais poderosa e letal que o vício da heroína, bastando uma única dose para destruir e, sem seguida, matar o seu usuário. O que terminou inviabilizando este narcótico comercialmente, embora fosse barato e de fácil cultivo.

No entanto, o objetivo desta droga extraterrestre não era a comercialização. Sua função seria facilitar a sintonia e o entendimento sobre o elevado nível de criptografia que velava as intenções dos verdadeiros mentores de toda a obra do Sol Negro na Terra.

Fanaspatic consumia esta droga fielmente deste os 12 anos de idade. Portanto, ele não podia ser qualificado como um viciado, mas sim um raro e talentoso servidor do mal — desde a adolescência.

E este era um daqueles dias em que a “majestade” — seu codinome oculto — se entregava ao rito de, digamos assim..., solar o consumo do paganiarã, em sua flauta sagrada, sempre coberta por uma fina resina: uma complexa sopa neurotóxica que mataria o pior dos peçonhentos.

A flauta transversa, o baranu, só emitia o código sonoro e luminoso de contato com a realidade sombria, quando ele tragava uma escala oculta que emitia infrassons imperceptíveis até para um elefante ou qualquer outro membro do mundo animal. Por uma razão muito simples: as hostes que obsediavam-no eram expressões de vida que se encontravam abaixo do mundo animal e da própria realidade espiritual quíntupla da humanidade. Definir os instrutores de sua majestade, Fanaspatic, como bestas ou espíritos de consciência sub-humana e infra-animal, seria o mais correto.

Não poderia esperar, portanto, um desfecho piedoso para com aquele que nunca teve qualquer tipo de compaixão pelo gênero humano. Não era uma vingança que estava em andamento, mas um puro e natural restabelecimento de forças no seio da humanidade e de toda a natureza. Logo, o voo da redenção estava totalmente ciente dos perigos que incorria, ao se aproximar da região de Avala L e do sagrado IT2/5.

O dia estava claro, o céu totalmente azul e o Sol do meio-dia, inclemente. Neste cenário perfeito, lá estava Fanaspatic de pé, em cima do monumento ao mal e possuído, pois já havia consumido o paganiarã, no rito sagrado do baranu. Motivo pelo qual as feras do lago estavam agitadas, porque toda vez que ocorria esta epifania negra, elas ficavam indomáveis e com um furor destruidor amplificado.

Inesperadamente, um vento angulado e forte entrou pelo lado oriental do templo, sumindo em seguida como se nunca tivesse passado por ali. Fanaspatic, paramentado com suas insígnias e vestes vermelho rubi, estranhou, mas deu continuidade ao rito infernal. Agora, um poderoso som se dirigiu para o local. A vibração alcançou uma intensidade tal, que amedrontou até os temidos habitantes do lago, ao ponto de paralisá-los.

Sua majestade, o sumo sacerdote, imaginou que fosse uma manifestação especial dos seus mentores, algo novo, mas...

Um escorpião alado e com dimensões gigantescas, alcançou, enfim, o lago de Avala L. Ele era tão grande, mas tão grande que cobriu por completo toda aquela maldita área pantanosa, ao ponto de eclipsar o próprio disco solar, que naquele momento despontava no zênite com toda a intensidade.

Foi algo assombroso e nunca visto em toda a história humana! Nem mesmo no conjunto de todas as escrituras sagradas, algo assim foi registrado. O gigantismo deste aracnídeo voador, terminou por gerar um fenômeno astronômico ímpar: um eclipse total do Sol, sem a presença da Lua.

A duração deste fenômeno ou milagre mítico foi exatamente a mesma de nossa união vínica e eucarística: não mais do que um minuto.

Escuridão absoluta. Nem mesmo os seus habitantes naturais, os animais da floresta ou os seres do lago, ousaram se manifestar ou desafiar o que estavam presenciando. Passividade e submissão completa. O silêncio das trevas dizia tudo por si só. Desta vez, não haveria o céu e suas estrelas; e mesmo que fosse possível, certamente elas revelariam um infausto presságio à sua majestade.

O tempo foi passando. Entretanto, como demorava, parecia uma eternidade. Mas ele chegou ao fim!

Após o eclipse no templo, o gigante alado se moveu suavemente do poente, onde estava, para o norte, ficando, deste modo, em linha, exatamente em frente ao seu destino, localizado no centro da ilhota.

Embora o maldito não soubesse ou sequer suspeitasse, o seu patíbulo já estava pronto. O dia do acerto de contas tinha chegado!

A psicose avançada da majestade, manifesta num colérico projeto de poder, arrogância absoluta e crueldade, fizeram com que ele baixasse suas guardas diante do seu algoz, ao julgar que estava sendo “visitado” por uma manifestação divina de seus mentores.

“Não é uma simples questão de crença. É muito mais profundo! Milagres e graças fazem parte da existência, assim como vida e morte”

Foi seu primeiro e último engano!

Sorrindo, Fanaspatic dirigiu seu olhar para o norte do templo, na direção de um escorpião alado, de tom vermelho laqueado e de proporções inconcebivelmente ciclópicas. Como num jogo de xadrez, o gigante alado se deslocou com suavidade por sobre as águas do lago, batendo suas asas multicoloridas até um ponto em que ficou face a face com esta figura sombria.

Com o corpo totalmente imóvel, sustentando-se no ar através do uníssono movimento de suas asas, o ser alado preparou um movimento de grande mestre.

Todo o seu conjunto ocular — lateral e mediano — se concentrou hipnoticamente em Fanaspatic, deixando entender que era obediente à vontade deste corrupto sumo sacerdote. Para completar o ardil que colocaria o apenado numa situação sem fuga, o escorpião tocou os pés de sua majestade com suas pinças colossais, em sinal de completa submissão. Simultaneamente, com todo cuidado, sua cauda iniciou, bem vagarosamente, um movimento imperceptível, quer formou um arco perfeito em torno do sentenciado.

Os atos de aparente servilismo do escorpião foram fatais à execução da presa.

Movimentos perfeitos. Peças em posição. Agora, o tabuleiro pedia um único e último movimento. O rei deve morrer!

Para sua total admiração, aquele ser mítico — e pai das sementes! — emitiu três poderosos e audíveis sons. Dois semitons e um tom: as três principais notas da escala oculta que era executada durante o ritual do baranu, onde ele consumia sua quota mensal de paganiarã. Depois disso, o colosso voador emitiu três spots de luz com todos os olhos do seu conjunto ocular: dois curtos e um longo, refletindo uma luminosidade rubro metálica que iluminou sua majestade por inteiro.

Vendo isso, ele sorriu, pois teve certeza que o gigante alado só poderia ser um aliado, enviado por seus mentores.

Imediatamente após isso, o escorpião emitiu as mesmas notas em oitavas divinas, no tom que invocava o santo anjo Rushing: a sagrada e onipresente ave que guardava As Quatro Distâncias.

Com seus olhos transformados num enorme painel azul índigo, a mesma cor do Grande Azul dos triculus, Fanaspatic entendeu — desesperado! — que algo dera totalmente errado.
Mas agora era tarde!

Tudo aconteceu em frações de segundos, eliminando qualquer possibilidade de reação do maldito, que se viu possuído pelas pinças do seu algoz. Nesta posição, sem tempo hábil para esboçar qualquer resistência, um movimento seco de sua cauda, introduziu o aguilhão pelas costas, num ponto entre as escápulas, próximo ao coração.

À medida que sua majestade era inoculado por uma desconhecida neurotoxina esmeraldina, uma dor insuportável tomou conta de todo o seu corpo. No entanto, não era uma simples dor, mas um conjunto, uma síntese das dores e sofrimentos que esta criatura repulsiva infligiu sobre grande parte da humanidade.

A dor foi tanta que ele não conseguia vocalizar o que sentia. É lógico! Como um psicopata pode sentir a dor de bilhões de seres humanos? Não sendo capaz de sentir, ele paralisou pendurado no aguilhão.

Em virtude da minha união com Sanav transcender os domínios da objetividade e do corpo, eu vi, de onde estava, que o arco em torno de Fanaspatic, tinha se transformado num círculo perfeito, no momento da ferroada. A algema se fechou. Não há mais fuga e muito menos clemência!

Foi quando surgiu nos céus de Avala L, o invocado Rushing, com seu amoroso canto de paz e justiça. Embora pequeno, discreto, o poder desta ave sagrada transcendia as próprias dimensões do Sanav alado. Bem alto, de onde circunvoava, já observando o centro do lago, a pequena ave soltou um canto, uma senha de libertação maravilhosa que foi audível até no Pollatan, indicando que Sanav e sua vítima aferroada, deveriam deixar a ilhota e toda a região o mais rápido possível.

Assim se fez!

Os dois, então, iniciaram a sua jornada juntos, rumo ao justo sepulcro de Fanaspatic. Antes, porém, o Rushing soltou um dos seus ovos, com gemas de mágica alomorfia, no centro do lago...

Como a pequena ave era a guardiã das distâncias, ela sabia, de antemão, para onde escoltar o voo do carrasco, que trazia em seu enorme aguilhão, todo o peso do maior traidor e genocida da espécie humana.

Eles rumaram para o Igaraiu, onde seria definitivamente justiçado o abjeto senhor do Sol Negro. A viagem foi rápida. Eles cruzaram uma vasta região do Nucatu, chegando ao local com a firme intenção de concluir a sentença.

Sim! A execução seria finalizada no local onde os pais de Sanav Rostran foram cruelmente assassinados pelos membros da Sipatte e, também, palco da Radmoslav do seu avô Sover, que terminou por transformar todo o vale num lago de lágrimas.

Novamente, bem lá do alto, o Rushing emitiu um dos seus belos cantos, soltando, em seguida, outro dos seus ovos mágicos no vale de lágrimas, que imediatamente se transformou num enorme poço de fogo líquido dourado.

Com uma de suas pinças, sem maiores cerimonias, o ciclópico escorpião tomou o corpo de Fanaspatic, retirando-o do aguilhão. O corpo, agora, está sob a guarda segura da pinça esquerda. Porém, antes da derradeira execução, a cauda de Sanav desferiu, com absoluta violência, uma ferroada no topo da cabeça de sua presa, inoculando, novamente, mais uma dose de sua letal neurotoxina esmeraldina. Em seguida, a pinça direita moveu-se à justiça, decepando, num único movimento, a cabeça do corpo. E como dois tubos de ensaio, o sangramento do corpo e da cabeça foram direcionados, por ambas as pinças, para o centro do lago dourado.

De cima, onde estavam os seres alados, era possível perceber que o sangue — imundo — de Fanaspatic não se misturou, apenas preencheu o centro ígneo do lago dourado. No entanto, a mistura se tornou homogênea, quando o corpo e a cabeça foram lançados ao lago, gerando uma explosão que tudo unificou.

Agora, aos poucos, como de encanto, o vale do Igaraiu foi se purificando, até que transmutou num lago de rara beleza e paz.

Missão cumprida? Talvez sim, mas creio que não!

O Rushing despediu-se, com outro belo canto, dirigindo-se, em seguida, à guarda das Quatro Distâncias. Ninguém entendia, mas ele fazia isso simultaneamente. E assim ele seguiu, se mantendo indivisível e voando para as direções.

Solitário no céu, Sanav sabia que deveria voltar, pela última vez, ao Pollatan. À medida que retornava, suas dimensões iam voltando ao normal. Quando chegou, sequer foi percebido, pois era apenas um minúsculo aracnídeo alado de cor vermelha.

Ele entrou pela mesma janela que saiu, encontrando-me no mesmo sofá, seminua, cansada, mas feliz com seu retorno.

Em seguida, pousou suavemente em minha mão esquerda. Em lágrimas, toquei o seu corpo vermelho com meu indicador direito e o batizou, sagrando Sanav como o grande Berýlux. Ao tocar o corpo de Sanav com meu dedo de condão, o exosqueleto vermelho transmutou-se num corpo de esmeralda luminoso e translúcido.

Com o brilho azul índigo de todos os seus olhos, Berýlux despediu-se de mim e partiu atravessando, pela última vez, a janela de minha casa.

Não sei se ele foi para o céu infinito ou se possuía alguma morada terrestre, mas à medida que ia subindo aos céus, seu corpo esmeraldino ia aumentando sem parar, até que atingiu, novamente, proporções ciclópicas e definitivas.

Aqui termina a Segunda Narrativa.

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