segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Parte IV — Herèdem

Sou filho de pai e mãe triculus; logo, um representante da família que nunca se misturou porque nossos matrimônios só aconteciam entre membros da Cúpula Sacerdotal. Essa característica não fazia de nós mais do que ninguém, embora esta peculiaridade tenha sido utilizada pelos seguidores do Sol Negro, com a simples finalidade de nos desmoralizar e destruir.

Por mais incongruente que possa parecer, mesmo sendo uma simples criança, eu fui o primeiro — e único — triculu a questionar a nossa não miscigenação com o resto da família humana. Não obstante meu ponto de vista e minha ingenuidade infantil, nunca fui criticado, e muito menos censurado pela Cúpula Sacerdotal ou pela minha própria família, por esta e muitas outras posições que sempre tive e sustentei publicamente, desde cedo.

Após os sucessivos períodos de fuga, minha família e eu nos estabelecemos, em segredo, no grande continente, o gigante Nucatu, na região do Igaraiu, onde, por mais paradoxal que possa parecer, imperava o poder maligno de Fanaspatic.

A decisão de rumarmos para o vale do Igaraiu, nos domínios territoriais do nosso opositor, foi dada pelo pai de minha mãe, o velho Sover: o mais antigo e sábio membro da exterminada Cúpula Sacerdotal.

De acordo com nossa tradição, decisões vindas de veneráveis sacerdotes da Cúpula, jamais era questionadas, e muito menos contrariadas. Respeitosamente, eram acatadas, e pronto, pois sabia-se que estas escolhas estavam fundamentadas em uma rara sintonia que eles tinham com a realidade transfísica e infinita do Todo Poderoso.

Por uma inclinação pessoal, sempre fui questionador! E não pude deixar de pensar, na intimidade do meu silêncio, quando chegamos em Nucatu: “Por que o vovô escolheu este lugar, o mais infeliz e perigoso de todos para vivermos?”

Poucos dias após nosso estabelecimento no vale do Igaraiu, uma região inóspita do grande continente, o velho Sover me surpreendeu. Eu estava sozinho, olhando a paisagem e a transparência de um pequeno curso d´água, quando o vovô surgiu em meio a minha divagação: “Sanav, o vovô não está maluco, não! Além disso, não sou eu que escolhe. Tudo dará certo”.

Embora eu ainda fosse uma criança, desde esse dia amadurecia o claro entendimento de que o vovô possuía, a despeito de sua avançadíssima idade, uma lucidez absoluta de si, e uma percepção profética sobre fatos e pessoas, sempre que necessário.

Não demorou muito, e o tempo foi passando, quando em minha adolescência, por razões que eu desconhecia, recebi, através das mãos do vovô Sover, a minha sagração telúrica. Daí em diante, tornou-se ainda mais efetiva a orientação espiritual e educacional dispensada pelo vovô. Eu não era mais um menino: agora era um legítimo Filho do Fogo.

Foi durante esta minha fase de transição que o nosso paradeiro foi descoberto por rastreadores de uma poderosa milícia. Sob a anuência corrupta do governo de Fanaspatic, os milicianos foram treinados e mentalmente lavados para perseguir qualquer rastro — ainda existentes — da velha forma de vida tricula em meio a população submissa, mesmo sabendo que toda a sociedade dos Irmãos tinha sido trucidada, antes da instauração da Nova República Planetária: o Reich do Sol Negro.

A busca incansável por resíduos ou informações a respeito de triculus, passou a ser o combustível existencial que movia esta missão genocida com carta branca. Ela varria, dia após dia, todo e qualquer trecho do grande Nucatu, em busca de resíduos ou cidadãos simpatizantes ao ideal dos extintos triculus. Confirmadas as suspeitas, através de um minucioso serviço de inteligência, os “traços”, como eram designados os alvos a serem neutralizados e eliminados, eram literalmente “apagados”, não restando nada, a não ser um serviço limpo, profissional e muito bem sucedido da Sipatte: uma elite militar imoral, composta por guerrilheiros caçadores a serviço das trevas.

Os líderes do Sol Negro julgavam a missão delegada aos membros deste exército de miseráveis, uma perfeita busca fantasma, pois tinham a absoluta certeza de que não restava mais nenhum de nós sobre a Terra; como também, qualquer forma de resistência ou rebelião contra a RMSN — República Mundial do Sol Negro.

Numa triste alvorada de inverno, quando a noite começava a se mesclar com o dia, vovô me acordou subitamente, me dizendo para segui-lo o mais rápido possível.

Como éramos cidadãos totalmente pacíficos, portanto, nada beligerantes, nos tornamos presas fáceis dos milicianos que, covardemente, assassinaram meus pais. Antes da execução sumária, eles foram humilhados, sofrendo toda uma hedionda gama de sevícias e torturas. Após serem violentados por inúmeros destes mercenários, ambos foram decapitados e servidos como refeição aos animais silvestres da região.

Embora estivéssemos numa região isolada, sempre nos preocupávamos em conhecer bem o local e seus possíveis pontos de fuga, para qualquer eventualidade. E foi por um destes caminhos de emergência que o vovô nos guiou.

Os milicianos do Sipatte já estavam em nosso rastro, e este deveria ser, também, devidamente apagado.

Em desesperada retirada, rumamos, então, por uma das encostas que cercavam nossa localidade, o Igaraiu: um pequeno vale em forma de cone.

À medida que subíamos, ficamos vulneráveis, pois podíamos ser vistos e seguidos mais de perto pelos rastreadores e toda a tropa de sipattes. Foi quando notei que o vovô Sover estava estranho e possuído por uma inquietação que me atingia completamente.

Na subida íngreme, observei que o Grande Azul do vovô — o poderoso centro ígneo dos triculus — apresentava uma tonalidade de azul muito estranha, instável. É como se ele estivesse piscando e se mesclando com o prateado.

Quando atingimos o topo desta encosta, a mais alta montanha que formava este vale, o vô me pegou pelas mãos, beijou-me o Grande Azul, fazendo, em seguida, uma espécie de ritual. Depois, carinhosamente, me colocou atrás dele, virou-se para a face da encosta que tínhamos subido, e começou a chorar — em profundo êxtase.

Sem entender nada, eu olhava para baixo e via os nossos algozes subindo rapidamente, com sangue na boca, com o único propósito de nos matar.

“Isso não é hora para se ajoelhar e chorar, mas de fugir”, pensava enquanto via aquela cena desesperadora.

Algo surreal, no entanto, aconteceu!

O vovô Sover passou a chorar numa quantidade absurda. Suas lágrimas se multiplicavam com tal abundância, que se assemelhavam a vasão de cataratas em épocas de cheias. Assombrava, dava medo! Fiquei tão apavorado que dei alguns passos para trás, onde pude ver os seus olhos verterem um fluxo de lágrimas inimaginável.

Sim, é evidente! Toda aquela encosta se transmutou numa gigantesca cachoeira de lágrimas que tragou e afogou todos os rastreadores, arrasando toda a milícia de assassinos. Não restou um sequer.

Quando o dilúvio foi totalmente pranteado, o vô caiu de frente, e todo o seu corpo se liquefez numa enorme gota de lágrima que crescia como uma bola de neve, à medida que descia pela encosta úmida. Quando esta atingiu o solo entre o conjunto de montanhas, onde morávamos, todo o vale se transformou num gigantesco lago de águas lacrimais.

De onde eu estava, no topo da montanha, pude observar os restos mortais de toda aquela horda de criminosos boiando ou submersos em meio a insólita vingança da natureza, que utilizou o vovô Sover como instrumento de justiça avassaladora.

Após observar durante um bom tempo toda aquela calamidade surrealista, me lembrei de algo extremamente importante, que somente agora faz sentido para mim.

Desde criança, sempre gostei de escutar as diversas histórias do vovô com toda a atenção. Em uma delas, ele descrevia, de uma forma muito detalhada e sedutora, o grande mistério que envolvia o “segredo triculu”. Resumidamente, este dom extraordinário, incomum, se limitava a fabulas míticas, cujo conhecimento se perpetuava através de uma tradição oral, alcançando gerações e mais gerações, desde tempos arcaicos.

O vovô ainda dizia que este dom salvador era um segredo, porque nem mesmo o possuidor desta dádiva sabia algo a respeito dele. Ele existia como um fenômeno salvador espontâneo e independente da vontade humana, pois emergia em ação, somente em situações de crise iminente ou perigo extremo, não somente de um triculu, mas dá espécie humana.

A Radmoslav, uma graça e um fenômeno divino inerente aos triculus, podia ser qualificada com raríssima, pois o próprio velho Sover, o mais antigo Irmão de nossa linhagem, dizia que a última manifestação aconteceu há uns 1.500 anos, de acordo com o soube através do seu contato com as gerações mais antigas.

Eu me encontrava, por isso, diante de uma situação das mais paradoxais, pois, de um lado, fui expectador de um aterrorizante massacre familiar; e, de outro, me tornei testemunha de um milagre espiritual dos mais infrequentes.

No topo da mais alta montanha, eu sentei e meditei por um longo período. Após esta comunhão, compreendi, a despeito da minha adolescência, a complexidade do ocorrido e do quanto isso influenciaria toda a minha vida dali para frente.

A manifestação da Radmoslav, da qual fui testemunha ocular — única! —, aniquilou com toda a legião de homicidas do Sipatte. Desta vez, no entanto, quem não deixou rastro de espécie alguma foi a providência divina.

Compreendi, por um encadeamento lógico, que a destruição da minha família e de nossos pretensos carrascos, revelou algo bastante benéfico, embora o meu momento fosse trágico e da mais desoladora solidão.

Não sei muito bem a razão, mas tudo isso me salvou, protegeu meu destino, impulsionando-me para um futuro bastante isolado, porém nunca solitário, pois como um Irmão Consagrado, Deus nunca me faltava: Sempre me bastava em todas as minhas reais necessidades.

Fui objetivo comigo mesmo, pois a natureza já tinha se encarregado de realizar tudo por ali. Segui, então, o meu destino, e retirei-me do Igaraiu para sempre.

Não sabia muito bem para onde ir. Rumava para algum lugar desconhecido para mim, porém sabido de minha natureza mais sensível.

Os anos se passaram, e pude atravessar a imensidão do Nucatu com total segurança e paz, porque o autoritarismo dos fieis da escuridão terminou criando — sem querer? — todas as pré-condições para que eu vivesse em qualquer parte do imenso continente, sem ser incomodado em momento algum.

A tragédia e o milagre do Igaraiu eliminou qualquer possibilidade de comunicação entre o Estado e os mercenários do Sipatte. Logo, não havendo mais tropas assassinas, não mais existia, por sua vez, informação e...triculus. Por conseguinte, enquanto último representante da família dos Irmãos sobre a Terra, eu simplesmente não existia: me tornei um dado estatístico inverificável, um sobrevivente invisível e com nova identidade. Sanav Rostran agora é um homem comum, em meio a uma sociedade dominada pela política fundamentalista do Sol Negro.

Que ironia! Os métodos sombrios de dominação de um Estado totalitário e transcontinental, gerou, espontaneamente, um manto protetor sobre minha vida, que agora evoluía, com segurança, num absoluto anonimato.

Vários anos se seguiram, e eu atravessei algumas décadas absolutamente ciente de algo irrefutável: não existia mais triculu algum no mundo, além de mim. Isso me colocava, também, diante de uma insolúvel situação, pois um representante da Cúpula Sacerdotal, jamais poderia se casar com uma mulher que não fosse da mesma casta sacerdotal.

Então, estava muito bem definido em mim que eu não me casaria; portanto, não daria prosseguimento à nossa linhagem. Mas não era só isso!

Mesmo sendo um triculu consagrado nos mistérios telúricos, eu não poderia dar continuidade à nossa sagração una em meio aos homens, porque a sanha do totalitarismo, alinhado a uma abjeta utilização da ciência nano biotecnológica, tinha destruído integralmente as culturas do trigo e da videira em todo o mundo — além do lúpulo e da cevada.

Portanto, sem pão e vinho, era impossível efetuar a sagração do fogo e, por sua vez, perpetuar esta maravilha espiritual no seio desta humanidade, combalida pelas forças satânicas que, majoritariamente, escravizavam a Terra, ainda composta por um expressivo contingente de almas sedentas por Deus.

É fácil para um triculu treinado como eu, perceber tal realidade. Eu “via” os “sinais” e as “marcas” individuais que emergiam à minha visão, sempre que mantinha contato com as pessoas, nas mais diversas situações.

Caminhei, andei muito pela vastidão do grande continente. Mas certa noite, num sonho, fui visitado por uma visão, onde o vovô Sover aparecia sorrindo, dizendo: “Vá à província do governo. Pode parecer árido, mas o solo é fértil, fecundo”.

Ao acordar, fiquei admirado! O que de bom ou produtivo poderia vir da cidade que abriga a sede planetária do Sol Negro e, também, morada governamental do abjeto Fanaspatic?
No entanto, como norma de conduto e orientação espiritual, as decisões de um ancião triculu não são questionadas, mesmo que venham de um sonho.

Não questionei, ou sequer refleti.

Rumei para o Pollatan: foco de tudo o que é espiritualmente imoral e obscuro, o berço que gestou o Vaga e comandou o extermínio fratricida que acabou com os triculus, além de bilhões de seres humanos, sem um pingo de compaixão ou remorso.

Sem pestanejar, rumei à cova dos leões.

Esta foi a primeira vez, em toda a minha vida, que percebi uma expressiva inquietação interior que me levou, por sua vez, a um medo irracional. No entanto, não havia o que temer porque não existia ameaça alguma contra mim.

Por que, então, esta sensação sem sentido?

Eu não temo o desconhecido, embora suspeitasse: “Esta irracionalidade oculta algum sentido, algo novo que terei que me confrontar”.

Logo que cheguei no Pollatan, novamente um temor jamais sentido se apossou de mim — como uma sombra — por vários minutos, desaparecendo em seguida, como se nunca tivesse existido
Da mesma forma que um calafrio que produz simultaneamente frio e calor, esta “estranha sensação” produzia um medo agudo, aterrorizante, mas terminava em extrema felicidade.

Me desliguei deste confuso e paradoxal momento, e procurei conhecer a cidade negra, seus hábitos, população, costumes e, para não fugir da rotina, todas as possíveis rotas de fuga para qualquer eventualidade — embora tal precaução fosse absolutamente desnecessária.

Como o anonimato tinha se tornado minha maior salvaguarda, procurei me estabelecer, em poucos dias, junto ao mais rejeitado gueto da sociedade pollatan: O Agorin. Embora o Estado visse este núcleo sócio habitacional como uma aberração “inofensiva”, porque ainda trazia fortes resquícios da humanidade do período pré-Vaga, eu sabia que ali seria o lugar perfeito para me manter e, principalmente, estabelecer laços seguros para esta nova fase da minha vida.

Fui viver no Agorin, um universo são, dentro de uma sociedade perdida. Paradoxalmente, um exílio sem fuga. Lá moravam os Larrocos, que em pouco tempo entendi serem a elite intelectual de toda a Terra.

Composta por professores, historiadores, pensadores e doutores das artes e ciências, os Larrocos representavam um significativo fragmento do saber humano que sobreviveu ao expurgo realizado pelo Vaga e a todo o período de terror, desde que foi instaurada a República Mundial do Sol Negro.

De modo análogo, como último representante de toda uma linha de evolução tricula, eu me tornei, também, um fragmento, um remanescente de um passado espiritual muito bem sucedido.

A situação se assemelhava a uma grande ilha, onde havia um vulcão. Um dia, ele entrou em erupção e a destruiu completamente, restando, somente, duas pequenas micro ilhas, separadas, agora, pelas águas oceânicas. Estes dois fragmentos territoriais restantes, estas duas ilhas, tinham tudo para, unificadas, se transformarem num grande continente. Mas...as condições político-policiais não permitiam esta associação — no momento.

Mesmo podendo confiar integralmente nesta sociedade de sábios, eu decidi que não deveria me revelar e dizer quem eu realmente era, senão colocaria todo aquele complexo social e todos seus habitantes numa situação de extremo perigo.

Os dias se passaram, e o convívio com os seus membros me fortaleciam de uma maneira indescritível. Crianças, jovens, adultos ou idosos, todos me inspiravam porque me faziam lembrar do mundo e da sociedade construtiva edificada pelos triculus.

Gostasse ou não, esta situação me colocava, imperativamente, sempre à parte: o anonimato representava o meu porto seguro, independente da minha total confiança nos Larrocos. Já não era apenas uma questão de segurança pessoal.

Minha absoluta impotência me incomodava muito, deixava-me infeliz, frustrado porque eu possuía algo que gostaria de dividir e compartilhar com todos eles: a Sagração Telúrica, da qual tinha me tornado o último representante.

Inútil, também! Sem pão e vinho, nada poderia ser feito. Me sentia como uma equação sem solução, cujo único resultado possível era a realidade insuperável da impotência. No entanto, tinha a certeza — inabalável! — que os efeitos da sagração tricula eclodiriam com proporções atômicas no interior daquela sociedade amiga — e promissora...

Mais alguns dias se passaram, até que pudesse conhecer totalmente o território do Agorin, pequeno no tamanho, porém abrigava uma — oprimida e esquecida — micro sociedade que tinha tudo para alterar aquela realidade política local e mundial, principalmente. Esta certeza, eu levava, solitariamente, junto com a discrição e o fardo do meu anonimato.

Um pouco depois, tive uma incontrolável curiosidade de conhecer o respeitadíssimo setor dos professores. Mesmo sendo a menor ala habitacional do Agorin, os que ali residiam gozavam de grande prestígio, porque representavam a elite da instrução nos seus mais variados níveis naquela sociedade.

Em razão do vovô ter sido um instrutor magistral, minha inclinação pelos satair — os professores — não aconteceu à toa.

Todavia, no meu interior, bem lá no fundo do que me restava de esperança, eu intuía — sem compreensão alguma — que existia algo além disso...

Exatos sete dias após esta primeira visita, retornei à morada dos satair, com a firme intenção de tentar entender, mesmo que limitadamente, os meus sentimentos — enigmáticos, estranhos.

Não sabia eu que eram, também, insinuações gritantes do destino, pois em certos momentos da vida, a totalidade põe-se a falar contigo de maneiras estranhas e aparentemente incompreensíveis.

Embora não fizesse parte do perfil de um trículo se fechar ao ritmo da totalidade, naquele momento me encontrava alijado do contato com o mundo interno e sua realidade oculta.

Esta foi a primeira vez, em toda a minha existência, que me senti infeliz e solitário, embora fosse portador da mais elevada sagração de comunhão espiritual tricula. Rezava, meditava, porém todos esforços para elevar, sentir e comungar com o fogo eram infrutíferos, frustrantes.

Nesta condição, consumido pela infelicidade, caminhei pela estreitíssima e curta rua dos satair.
Nesta solitária caminhada, onde cada passo tornava a pequena viela numa estrada sem princípio e fim, uma força atrativa, um poder descomunal me levou à frente de uma casa simples, contudo aconchegante. Paradoxalmente, via a mesma como uma ratoeira invisível! A sensação de estar entrando — passivamente — num abatedouro era pavorosa, aterradora. Um indescritível calafrio que me contaminou por inteiro, fez meu corpo tremer da cabeça aos pés e transpirar bicas.

Ao entender que nada poderia ser feito, não resisti e deixei o caminho guiar os meus passos, até que entrei, empurrado!, no interior do — tempo... — terreno desta misteriosa casa. Rapidamente, percebi que estava na residência de um dos mais ilustres e respeitáveis membros de toda a sociedade larroca: a eminente professora Lusnua, a qual já tinha percebido em certa ocasião, não somente pelo brilhantismo e inteligência fora do comum, mas, também, pela rara e impressionante beleza que paralisava qualquer um, tamanho era o magnetismo desta mulher.

De modo estranho, uma mudança súbita.

A mesma força invisível que me arrastou até onde estou, agora me guia com mansidão, de uma maneira muito afetuosa, até o interior da casa. Ainda assim, eu continuava com um medo absoluto. Temer o inexplicável, se sentir oprimido por um pânico injustificável, me colocou de joelhos, num estado de submissão ao desconhecido — quisesse eu ou não!

Espantosamente, toda esta sensação desapareceu quando eu cheguei ao corredor: um pequeno caminho que ligava a sala a um outro cômodo da casa.

Sentindo que a imperativa força que me guiou até ali, bem como toda a atmosfera de terror e pânico tinham se retirado de mim, pensei: “Qualquer pessoa que passasse por um momento tão extremo como este, por um impulso natural de auto preservação, não pensaria duas vezes e sairia fugido dali o mais depressa possível”.

Apesar de todo o sofrimento, optei por pensar, enfrentar e, agora sob meu domínio, orientar os meus passos rumo ao desconhecido.

Não tinha como suspeitar, mas a decisão que tomei, decretou-me um caminho sem volta.

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